sábado, 11 de janeiro de 2025

OLHAR PORTUGAL PELO MONÓCULO DE EÇA

                                                                             


 Ao homenageado de um século e uma quarta não pergunto o que estariam suas cinzas a desenhar com a pompa e a circunstância envolventes naquela soleníssima abside de Santa Engrácia. Peço-lhe apenas me recorde e faça reviver aqueloutra paisagem – “Portugal é Lisboa, o resto é paisagem”, ele o disse - que o seu vidente monóculo vislumbrou na família d’Os Maias.

         Abalizados analistas já o fizeram, Carlos Reis, Isabel Pires de Lima, Pinto Correia, Miguel Real   e, já antes, João Gaspar Simões, Aubrey Bell, Hernani Cidade, Fidelino de Figueiredo, João Medina, entre muitos outros. Da urna, assente na dourada essa  (que estranha homofonia!) e abraçada pela bandeira nacional,  uma resposta breve ressumava aos meus ouvidos: “Abre esses Episódios da Vida Romântica,  observa  duas cenas e isso te basta: o Capítulo X e a dupla “Maria Eduarda/Carlos da Maia”.

         Sem desdouro dos panegíricos palavrosos e  dos mais inflamados e/ou repuxados à cintura patriótica dos oradores de turno do Panteão, os dois episódios sintetizam  de forma genial o estertor civilizacional e a decadência do Portugal dos fins do século XIX: o Hipódromo e o Incesto.

         No Hipódromo, tudo transpirava a decrepitude mal disfarçada do país, desde a tribuna ao bufete:

 O bufete estava instalado debaixo da tribuna, sob o tabuado nu, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balcão tosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam à pressa as fatias de sanduíches, com as mãos húmidas da espuma da cerveja… Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da polícia; as senhoras,. com as saias apanhadas, fugiam através da pista, procurando espavoridamente as carruagens – e um sopro grosseiro de desordem reles passava sobre o hipódromo, desmanchando a linha postiça de civilização e a atitude forçada de decoro… Isto é um país que só suporta hortas e arraiais. Corridas, como muitas outras coisas civilizadas lá de fora, necessitam primeiro gente educada. No fundo, todos nós somos fadistas! Do que gostamos  é de vinhaça e viola e bordoada, e viva lá seu compadre! Aí está o que é!  

         Humilhante, porque degradante, o ADN do povo português, nesta ardilosa construção do ‘hipódromo’, tipicamente queirosiana.

         Mas há mais, na fértil imaginação criativa do romancista. Como fatídica decomposição genética – crâneo inerte nos ombros de um esqueleto amorfo – rebenta o escândalo familiar, ético-social: o incesto: Depois de tanto se amarem, Carlos e Maria Eduarda descobrem que são irmãos. Inexorável! Inelutável! Sem apelo possível! Nada a fazer ou a esconder:

         _ E aqui tens tu a vida, meu Ega! Neste quarto, durante noites, sofri a certeza de que tudo no mundo acabara para mim… Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E tudo isto friamente, como uma conclusão lógica.

-Falhámos a vida, menino – exclamou Ega.

- Não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma.

- Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder.

Na vasta galeria das diversas tipologias sócio-culturais d’Os Maias, é o tédio visceral que enferma a sociedade portuguesa, contra a qual se insurge a “Geração de Setenta”, precursora da evolução republicana de 1910. “Os Vencidos da Vida” e o “Grupo dos Cinco”, com Antero na vanguarda, fizeram estalar o esfarrapado verniz de um Portugal no charco, genialmente patenteado no Hipódromo e no Incesto.

                                                   


Que escreveria Eça, 125 anos depois, sobre este seu e nosso país?

Aceitam-se propostas, desde as mais sérias e científicas às mais  hilariantes e mordazes. Matéria   prima não lhe faltaria. Bem asizado andou Aguiar Branco, presidente da Assembleia  da República, quando puxou para o seu discurso uma tirada pró-queirosiana, ao imaginar “os termos jocosos” com que Eça poderia descrever o  patriótico e sumptuoso ritual da transladação.

  Por mim, não duvido que, perante os 300 convidados, aperaltados como o Palma Cavalão  ou como a  Condessa de Gouvarinho, repetiria os mimos picarescos da Carta que escrevera a Pinheiro Chagas; “Seus Excelentíssimos patriotaças, patrioteiros, patriotinheiros, patriotadores e patriotarrecas”…

Ler Eça faz bem à saúde. E aproxima-o do extinto Bisnau, do regionalista Re-Nha-Nhau e da Charlie Hebdo , sobretudo da homenagem às vítimas do atentado ocorrido há 10 anos em Paris.

A falta que faz hoje o bom humor  de Eça de Queirós! 

 

 11.Jan.25

Martins Júnior

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