Ao homenageado de um século e uma quarta não
pergunto o que estariam suas cinzas a desenhar com a pompa e a circunstância
envolventes naquela soleníssima abside de Santa Engrácia. Peço-lhe apenas me
recorde e faça reviver aqueloutra paisagem – “Portugal é Lisboa, o resto é
paisagem”, ele o disse - que o seu vidente monóculo vislumbrou na família d’Os
Maias.
Abalizados analistas já o fizeram,
Carlos Reis, Isabel Pires de Lima, Pinto Correia, Miguel Real e, já antes, João Gaspar Simões, Aubrey
Bell, Hernani Cidade, Fidelino de Figueiredo, João Medina, entre muitos outros.
Da urna, assente na dourada essa (que estranha
homofonia!) e abraçada pela bandeira nacional,
uma resposta breve ressumava aos meus ouvidos: “Abre esses Episódios
da Vida Romântica, observa duas cenas e isso te basta: o Capítulo X e a
dupla “Maria Eduarda/Carlos da Maia”.
Sem desdouro dos panegíricos palavrosos
e dos mais inflamados e/ou repuxados à
cintura patriótica dos oradores de turno do Panteão, os dois episódios
sintetizam de forma genial o estertor
civilizacional e a decadência do Portugal dos fins do século XIX: o Hipódromo e
o Incesto.
No Hipódromo, tudo transpirava a
decrepitude mal disfarçada do país, desde a tribuna ao bufete:
O bufete estava instalado debaixo da
tribuna, sob o tabuado nu, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo
corria uma prateleira de taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balcão
tosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam à pressa as fatias de
sanduíches, com as mãos húmidas da espuma da cerveja… Por entre o alarido
vibravam, furiosamente, os apitos da polícia; as senhoras,. com as saias
apanhadas, fugiam através da pista, procurando espavoridamente as carruagens –
e um sopro grosseiro de desordem reles passava sobre o hipódromo, desmanchando
a linha postiça de civilização e a atitude forçada de decoro… Isto é um país
que só suporta hortas e arraiais. Corridas, como muitas outras coisas
civilizadas lá de fora, necessitam primeiro gente educada. No fundo, todos nós
somos fadistas! Do que gostamos é de
vinhaça e viola e bordoada, e viva lá seu compadre! Aí está o que é!
Humilhante, porque degradante, o ADN do
povo português, nesta ardilosa construção do ‘hipódromo’, tipicamente
queirosiana.
Mas há mais, na fértil imaginação
criativa do romancista. Como fatídica decomposição genética – crâneo inerte nos
ombros de um esqueleto amorfo – rebenta o escândalo familiar, ético-social: o
incesto: Depois de tanto se amarem, Carlos e Maria Eduarda descobrem que são
irmãos. Inexorável! Inelutável! Sem apelo possível! Nada a fazer ou a esconder:
_ E aqui tens tu a vida, meu Ega! Neste
quarto, durante noites, sofri a certeza de que tudo no mundo acabara para mim…
Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E tudo isto friamente, como uma
conclusão lógica.
-Falhámos
a vida, menino – exclamou Ega.
-
Não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma.
-
Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder.
Na
vasta galeria das diversas tipologias sócio-culturais d’Os Maias, é o
tédio visceral que enferma a sociedade portuguesa, contra a qual se insurge a
“Geração de Setenta”, precursora da evolução republicana de 1910. “Os Vencidos
da Vida” e o “Grupo dos Cinco”, com Antero na vanguarda, fizeram estalar o
esfarrapado verniz de um Portugal no charco, genialmente patenteado no
Hipódromo e no Incesto.
Que
escreveria Eça, 125 anos depois, sobre este seu e nosso país?
Aceitam-se
propostas, desde as mais sérias e científicas às mais hilariantes e mordazes. Matéria prima não lhe faltaria. Bem asizado andou
Aguiar Branco, presidente da Assembleia
da República, quando puxou para o seu discurso uma tirada
pró-queirosiana, ao imaginar “os termos jocosos” com que Eça poderia descrever
o patriótico e sumptuoso ritual da
transladação.
Por mim, não duvido que, perante os 300
convidados, aperaltados como o Palma Cavalão
ou como a Condessa de Gouvarinho,
repetiria os mimos picarescos da Carta que escrevera a Pinheiro Chagas; “Seus
Excelentíssimos patriotaças, patrioteiros, patriotinheiros, patriotadores e patriotarrecas”…
Ler
Eça faz bem à saúde. E aproxima-o do extinto Bisnau, do regionalista Re-Nha-Nhau
e da Charlie Hebdo , sobretudo da homenagem às vítimas do atentado
ocorrido há 10 anos em Paris.
A
falta que faz hoje o bom humor de Eça de
Queirós!
11.Jan.25
Martins
Júnior
Temos falta de Eças e de quem saiba lê -los!
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