Na roda gigante de todas as vidas, há
um repetido stop que no nosso
calendário civilizacional se pode definir como “duas em uma”: é o Dia da
Apoteose, 1 de novembro, e o Dia da Saudade, o que imediatamente se lhe segue.
Reúne-se o grande fórum da família universal, o incomensurável abraço do antes,
do agora e, presuntivamente, do depois. Abrindo a necrologia dos jornais, vemos
que todos os dias são 1 e 2 de Novembro.
É neste círculo envolvente que trago esta
reflexão sobre o que, sendo tão banal, se nos torna tão estranho. Pelo pavor e
pela dor. Há quem lhe chame o último acto da nossa vida, há quem o classifique
como a nossa última reforma, e até Fernando Pessoa vê o caso tão normal que até
reconhece que “morrer é só deixar de ser
visto”.
Pois bem, devo confessar que, de entre
todas as intuições e definições --- e são tantas para quem, como eu, acompanha vezes
sem conta o itinerário final de amigos e conterrâneos --- um dado empírico esboçado
por um cientista de renome, o Prof. Dr. Carlos Fiolhais, tocou-me mais
intimamente quando lhe ouvi em recente conferência: “Cientificamente, sem morte
não há vida”.
Tanto basta para serenar os nossos ânimos
perseguidos pelo espectro da morte. A nível da física, da química, da biologia,
a conclusão é essa.
Olhei então para o milagre da terra,
para as mutilações a que são sujeitas as árvores, a vinha e, colocando-me na “pele”
do ramo amputado, gritaria para o agricultor: “Por que me cortas, por que me
matas?” . E a resposta está lá na raiz e no tronco. E que beleza maior que o
rebento das folhas, as amendoeiras em flor, as cerejeiras mimosas branqueando a
paisagem?! Mas a flor terá de cair para dar lugar à plenitude do fruto. E
quantos grãos produzirá um grão de trigo entronizado num relicário sacro ou no
mais rico guarda-jóias?... Zero. Mas “se morrer e se sepultar na terra dará
muito fruto” (Mt. ) brotarão espigas douradas, pão farto para o banquete da
vida.
Transpondo a evidência biológica para o
domínio da antropologia e da sociologia, quão diversos seriam os comportamentos
e que de transformadoras e reconfortantes partilhas seriam tecidos os nossos
dias?... De pais para filhos, de governantes para governados, de empregadores
para assalariados, de mestres para discípulos. E que paz interior saber-se que
a nossa finitude individual é a factura do inquilino transitório em prol do
crescimento global projectado na História futura! É inevitável dar o lugar a outros. Inevitável,
mas glorioso!
Deixo
ao recôndito de cada consciência o fluir personalista deste filão inspirador.
A este propósito, dei hoje com os olhos
numa reportagem (inquéritos e
testemunhos) do “Libération”, edição
de 2 de Novembro, intitulada “Mourir et
Chansons”, onde se lê:_”Entre os
ateus e os crentes, tanto nos crematórios como nas igrejas, a música pop, rock,
electro e demais variedades são cada vez mais convidadas para os ritos
fúnebres”. Acrescenta ainda que, normalmente, as músicas são aquelas que o
defunto mais apreciava, desde Time to Say
goodbye de Andrea Boticelli e Sarah Brightman, Tears in Heaven de Eric
Clapton, Goodbye My Lover de James
Blunt até a histórica Candel in the Wind de Elton John.
Pela minha parte, jamais esquecerei
aquele funeral, há muitos anos na igreja da Ribeira Seca, de uma mãe de seis
filhos, ceifada por dolorosíssimo e prolongado sofrimento. Antes da cerimónia fúnebre,
aproxima-se a filha mais nova, dez anitos, e diz-me ao ouvido: “Sr. Padre. A
minha mãe, antes de morrer, disse-nos que ao sair o caixão pusesse o CD “Festa do Povo/ O Povo é que trabalha/ E faz
o mundo novo”. Arrepiei-me, pois
nunca tal acontecera e perguntei-lhe o porquê “É porque essa canção era a que a mãe pedia, e
aliviava-lhe as dores mais fortes”. E
assim se fez, com o espanto e a comoção de todos os presentes.
“Sem morte não há vida”.
Quando chegar a hora, não serão apenas
os olhos e o coração que vamos doar aos que ficarem. É a vida toda que se
transmite como um facho olímpico às futuras gerações. E aí, misturado com o
orvalho da saudade, será maior o Cântico do Amor - entrega total.
3.Nov.14
Martins Jr.
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