“Porém, não consintais que se lastime
Na
mesma estância, e em confusão se esmague
A
singela inocência a par do crime”
Porque passam, domingo próximo, 241 anos
sobre o seu nascimento, ponho na mesa do nosso convívio de hoje o último
terceto da carta que, em forma de soneto, foi entregue ao “Sereníssimo Senhor
D.João VI, Príncipe de Portugal”. O remetente foi um jovem, acorrentado nas
masmorras do Limoeiro, às mãos da Santíssima Inquisição: Francisco Álvares de
Nóbrega, conhecido entre os seus como o “Nosso Camões” e também por “Camões
Pequeno”. Para quem traça estas linhas e para todos os que têm no coração a
ilha da Madeira e, com maior emoção, o nome de Machico, lembrar Álvares de
Nóbrega é como sentir um rio que corre nas nossas veias, sangue sempre novo a
jorrar do terro e do rochedo que habitaram os nossos antanhos. É que ele nasceu
aqui, ano 1773, olhou o mesmo sol que nos aquece, subiu os mesmos socalcos que
nos vestem de verde, pisou o mesmo chão que nos aguenta.
Por isso, quando chega Francisco, o
“Nosso”, seca-nos a tinta na pena e trava-se-nos a força nos dedos: só dá para ver
o ecrã do seu percurso num silêncio ofegante, ao seguir-lhe os passos para
trabalhar no Funchal e ao transpor os umbrais do Seminário, já com vinte anos,
por sugestão do Mestre de Retórica Francisco Lopes da Rocha, deão da Sé
Catedral. Depois, é vê-lo enrolado no turbilhão das lutas político-ideológicas
dentro da própria organização diocesana: de um lado, o bispo ultra-conservador
José da Costa Torres e, do outro, os “pedreiros-livres”, os maçons, entre os
quais o número dois da Diocese (o citado deão da Catedral) e muitos padres e
forças vivas, não só da cidade do Funchal, mas de várias zonas rurais.
Prevaleceu, embora temporariamente, a razão da força e o “Nosso“ Francisco,
acusado caluniosamente de blasfémias contra a religião, foi levado, barra fora,
para os cárceres da Inquisição, onde se
encontrou na mesma cela com essoutra “alma gémea” Manuel Maria Barbosa
du Bocage, que fez do seu estro poético uma arma fulminante contra a ditadura
vigente. Aos trinta e três anos, doente, quase leproso em casa de um amigo e
benfeitor na rua S.João Nepomuceno, à Estrela,
despediu-se da vida, rodeado dos seus escritos. Até hoje, desconhece-se
o cemitério onde foi sepulto. Só a data:: 1806.
Maltratado em vida, esquecido na morte!
Votado ao ostracismo, o regime queimou-lhe os livros e apagou-o da memória dos
vivos. Só a partir de 1954, a Câmara Municipal mandou esculpir no Miradouro de seu nome o soneto dedicado “À
Pátria do Autor”, assim chamava o próprio ao seu Machico. Mais tarde, Alberto Figueira
Gomes editou as “Rimas” que ainda sobrevieram e João França dedicou-lhe o drama
em Um Acto “Camões Pequeno”. Desde 1960 e, com maior empenho e liberdade, após Abril
de 74 do século XX, passou-se a levantar bem alto a Mensagem de Álvares de
Nóbrega ininterruptamente em 30 de
Novembro de casa ano (e muito me conforta o ter contribuido para tal), culminando
todo este dever patriótico com a criação, em 2005, da associação cultural
denominada “EFAN-Estudos Nobricenses”, a qual deu à estampa as “Actas do
Bicentenário, 2006”, (uma colectânea de valiosos trabalhos apresentados por
investigadores da Madeira e do Continente) e o “Processo da Inquisição nº
15.764”, da historiadora dra. Ivone Correia Alves. Mais recente,
em publicação autónoma, o estudo
do dr.João Luís Freire e a estátua de
Francisco Álvares de Nóbrega, do escultor Luís Paixão, no Solar do Ribeirinho,
completam este feixe luminoso na ara do nosso conterrâneo.
Domingo próximo, 30 de Novembro, 17
horas , a Junta de Freguesia de Machico comemorará o 241º aniversário do nascimento
do nosso poeta-filósofo e, conjuntamente, a “EFAN-Estudos Nobricenses” editará a
aludida peça dramática “Camões Pequeno” (até agora inédita) do
falecido polígrafo madeirense João França.
Ler e conhecer Francisco Álvares de Nóbrega é mais importante que homenageá-lo. Tenho-o
dito e redito: Os homens verdadeiramente grandes não esperam nem precisam das nossas homenagens, nós é
que precisamos trazê-los para junto de
nós, bem à nossa frente, para que o seu brilho nos arraste para aqueles horizontes
que, no seu tempo, vislumbraram e ardentemente desejaram para nós, os
vindouros.
Fazer da nossa vida uma luta, da nossa luta um dever,
do nosso dever um prazer para tornar mais respirável a atmosfera e mais
habitável o planeta --- seja pelo estudo, pelo trabalho braçal, pela poesia,
pela música, por toda a arte, pelo ensino,
pela terra e pelo mar --- eis a grande Mensagem, a Única Homenagem ao
cognominado, embora, de “Pequeno”, será sempre o “Nosso Camões”.
27.Nov.14
Martins Júnior
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