É de orçamento que hoje vamos conversar, desde o nascer ao morrer deste dia ímpar. Não de orçamento municipal, regional ou nacional, muito menos europeu. Talvez --- e até está na moda --- se possa classificá-lo de orçamento participativo, super-participativo. Logo, hoje, domingo?...Estou a ver e ouvir o espanto de quem comigo conversa. E eu confirmo: é isso mesmo! Trata-se do nosso orçamento, o de cada um, o orçamento da vida. Porque, hoje é domingo e porque na trajectória sequencial destes entretenimentos procuro alinhar o pensamento pela proposta do texto bíblico que leio aos participantes da mesma mesa no templo da Ribeira Seca, a minha proposta tem a ver com o estar vigilante e, daí, preparado para entrar na última e inalienável, intransmissível reforma da vida: a morte. Optimista e positivo, o nosso J:Cristo conta, a propósito, aquela quase hilariante cena das dez raparigas solteiras que, na tradição judaica, foram especiosamente seleccionadas para a guarda de honra dos noivos, à meia-noite. Cinco, as prudentes, acenderam as lanternas da praxe e preveniram-se levando uma reserva de azeite, para qualquer avaria superveniente. As outras cinco, mais divertidas, mas boas moças (eram todas virgens, diz o texto) não deitaram contas (fizeram mal o orçamento) não levaram reserva de combustível, as lanternas apagaram-se, ainda correram à cidade para comprá-lo, entretanto chegam os noivos, a porta fechou-se. E quando chegaram, ninguém lhes abriu a porta. Moral da história, rematou o Mestre: “Estai preparados porque não sabeis qual o vosso dia e qual a vossa hora”.
Estas palavras, lembro-me bem, foram espremidas até ao tutano pelos pregadores do povo para meter medo às pessoas mais crédulas que viviam em trauma constante e, em desesperada urgência, lá vinha a “Emir eclesiástica”, à pressa, com óleos e unguentos “dar a Extrema-Unção” --- já o moribundo, quantas vezes inconsciente, tinha o corpo e o espírito voltados para o outro lado.
Porque, quando jovem, também assim me formataram, hoje considero criminosos (talvez, coitados, também eles inconscientes) os promotores desta psicose traumática perante o Além. “O que vai ser de mim no outro mundo???!!!”. Os pontos de interrogação e exclamação significam o pavor que cheguei a ver nos olhos angustiados de muitos doentes idosos.
E, por isso, fui descobrindo antídotos e pistas de saúde física e mental para este desassossego inútil. Em primeira mão, deixar de fazer da morte um tenebroso tabu. Não vale a pena perder tempo com ela, porque ela não se esquece de nós. Quando vier que venha. Ninguém descobrirá jamais a geografia do além-túmulo. Em segunda prospecção, concluí que só morre bem quem vive bem, não no sentido epicurista do termo, mas na realização do nosso orçamento existencial. Neste orçamento temos por receita as nossas capacidades, a saúde, a energia, o talento, seja ele intelectual ou braçal, enfim, todo o capital humano, legado hereditariamente ou adquirido no exercício quotidiano. A despesa, essa realiza-se-a no nosso posto de trabalho, seja ele qual for: são todos dignos os serviços prestados à causa comum-. Tive, em adolescente, um professor. capitão do exército, que morreu diante de nós, repentinamente, na aula de matemática. Foi um pavor. “Sem confissão nem extrema-unção”, comentávamos, transidos de medo. Mais tarde percebi que essa foi uma morte santa, heróica, perfeita. No seu posto. Ocupar o nosso posto, não tanto na mira de alcançar uma gorda benesse no Além, nem mesmo por místicas sublimações. Eça de Queiroz retrata magistralmente esta postura no diálogo entre o velho sábio agnóstico Afonso da Maia e o abade Bonifácio acerca da educação do netinho Carlos. Mais recentemente, Manuel Vicent, na última coluna da edição de cada domingo, no El País, enaltece a estatura moral e profissional dos médicos e enfermeiros que, estoicamente, desinteressadamente, morreram vítimas da luta contra o ébola e considera-os superiores ao esforço, também heróico, dos missionários que o fizeram apenas por inspiração religiosa ou para ganhar uma recompensa divina.
Saber realizar o nosso orçamento participativo enquanto inquilinos do planeta, do continente, da cidade ou da aldeia que habitamos --- sabê-lo e senti-lo --- eis a chave do sucesso e a arte de manter sempre aceso o facho luminoso da vida, para derrubar todas as muralhas do medo, tal como os homens e mulheres que, há 25 anos, varreram, a pulso e a golpes de montante, o vergonhoso muro de Berlim.
9.Nov.14
Martins Júnior
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