segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

MILITARES NA DITADURA, BISPOS E PADRES NA LUTA - RELATÓRIO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE


Concebeu-se, por unanimidade prévia, que no Natal se fizessem tréguas totais. Convencionou-se, desde a choça ao hipermercado, que só se desenhassem paisagens brancas de neve e luvas vermelhas para aquecer as mãos e os corações. Mas os factos desmentem este acordo tácito, com notícias contrastantes neste Dezembro, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos até à violência doméstica, atrocidades islâmicas, corruptos e corruptores, enfim, convenhamos que o próprio berço do Menino não foi de algodão ou de cambraia romântica.
E uma das notícias que agitaram o mundo, mais localmente o Brasil, foi o Relatório da Comissão Nacional da a Verdade, sobre a tortura no tempo da ditadura militar. Dizem os jornais, nacionais e estrangeiros, que a própria Dilma Rousseff  não conteve as lágrimas quando recebeu em mão o fatídico documento, lembrando-se do tempo em que ela mesma fora torturada.
Neste lembrete de hoje, quero compartilhar convosco uma coincidência “ímpar”, para mim, dado que foi nesse período de 1972, que me encontrei em Olinda e Recife com o arcebispo Hélder da Câmara (“não conheço esse bispo comunista”, disse-me o vendedor da banca dos jornais, a escassos metros da sede diocesana); foi então que conheci o corajoso bispo de Goiás e  os padres dominicanos na igreja da Lapa;  foi em São Paulo ---  oh ingénua imprudência --- que me atrevi a subir as escadas de um tribunal militar, na “Brigadeiro António”, e dei de contas que se tratava do julgamento de um preso, opositor ao regime, o que me fez descer imediatamente as mesmas escadas.
Mas o que mais me tocou foi a ida ao “Paço” do bispo Duarte Calheiros, em Volta Redonda,  periferia do Rio de Janeiro: Já não estará  certamente entre nós, senão a memória de um cidadão comum, entrando numa casinha rasteira, situada na encosta que deixava ver a largueza de uma cidade marcadamente fabril.
Uma senhora negra pergunta-me (a mim que esperei mais de uma hora na rua) “então não viu o sr. bispo? Ele entrou há pouquinho dirigindo um fosquinha azul”. (fosquinha é a designação brasileira de um vulgar volkswagen). Abriu-se a porta e encontrei-me com um homem robusto e optimista, um cinquentão, sem atavios nem cordões de ouro. Estremeci! Ganhando ânimo, disse-lhe que procurei a catedral e não encontrei vestígios dela na cidade, ao que ele me respondeu junto à varanda: “Oh padre madeirense, você está a ver aquele telheiro de zinco lá ao fundo?” Sim, é uma fábrica. E ele: “Não, é a minha catedral. Olhe mais além e mais acima, são também as minhas catedrais.”  
Chega, entretanto, um  jovem de seus trinta anos, cabelo à escovinha, enfiado numa t-shirt branca. Abraçaram-se. Era um padre que tinha acabado de cumprir pena na rigorosa prisão da “Praia Grande”. Achei que já estava a mais naquele encontro de confidências sobre os maus tratos e torturas infligidos ao, nessa altura, intrépido clero brasileiro, ao lado das vítimas da ditadura militar. Mas ainda houve tempo para uma outra confidência: “Sabe, padre madeirense que o Estado brasileiro já me instaurou três processos a que tenho de responder judicialmente? Olhe, o último foi na Semana Santa, quando pedi a um artista que me fizesse no altar  um painel da Crucifixão. Imagina que a Auditoria militar descobriu na face do Crucificado o rosto do Che Guevara!” Duarte Calheiros e o padre, seu colaborador, sublinharam com uma risada tipicamente carioca a notícia dos futuros julgamentos, talvez na “Brigadeiro António”.
Seja esta mini-prenda do dia ímpar um derivado da mirra --- martírio e sacrifício --- que o Rei Negro ofereceu ao Menino. Sirva também para descobrir a pureza da Igreja do Brasil em tempo de ditadura, na esteira do grande missionário Padre António Vieira, o bispo António Fragoso, Leonardo Boff, Frei Beto e tantos outros  em defesa de quem vive o seu presépio na valeta das vias rápidas e nos antípodas de reis, banqueiros, cardeais e bispos anafados.
Um afecto especial para um outro lutador contra a ditadura brasileira, o Pe. Alípio de Freitas, ainda vivo, a quem agradeço a presença na Associação José Afonso, em Lisboa, no lançamento do Cancioneiro e CD “A IGREJA É DO POVO E O POVO É DE DEUS”,  história de luta de um povo madeirense, a Ribeira Seca.
Vejam e façam o paralelo com a paisagem dos dignitários eclesiásticos do rectângulo e da ilha do basalto.      

15.Dez.14

Martins Júnior

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