Parecendo um desvio sazonal banalizado pela tradição, tenho vindo a reflectir, divagando, com o desejo de ver o dentro desta quadra. Nada melhor que citar as “Ilhas de Zargo”, do eminente investigador e poeta madeirense Padre Eduardo Pereira:: “Precede a solenidade da Festa um novenário conhecido pelo de Missas do Parto, celebradas ante-manhã com loas ao Menino, que dão lugar às primeiras demonstrações de júbilo e entusiasmo pela aproximação daquela quadra festiva.Os templos regurgitam de fiéis que afrontam a chuva, o vento forte e o frio das rigorosas manhãs de Dezembro e se encaminham para a igreja com toques e descantes. O rajão , a gaita e outros instrumentos de uso regional cadenciam o passo dos ranchos e as castanholas estalam desconcertantes aquecendo as mãos do garotio. O povo torna-se expansivo e alegre; uma feição sentimental de comunicativa familiaridade estreita vizinhos e amigos; adormecem todos os ódios e renascem, como motivos de vida, a esperança e a saudade. É a única quadra do ano em que a alma popular vibra espontânea e dá largas a uma expansão natural” (vol.I:: 405).
Muitas e variadas são as interpretações para este fenómeno de euforia colectiva. No subconsciente das pessoas está presente a matriz original do Menino Salvador, aliada àquela reminiscência de um povo explorado pelos senhorios e ansioso por chegar à Festa para beber cacau e canja de galinha.
Para além destas possíveis leituras do evento, vejo um outro móbil, este já incrustado na própria condição humana: a expectativa, a chegada, o advento de algo de novo. Os cuidados neonatais, a espera de uma nova vida, reflectindo-se depois, em termos psico-sociológicos, no nosso olhar atento a “dias melhores que hão-de vir”, enfim, o movimento anímico da gestação de um outro futuro, tudo isso, projectado e incarnado no Menino de Belém, acende em nós uma chama na noite escura. Não só as nossas mães: nós próprios somos parturientes de um sonho maior. E este íman secreto, mas congénito, talvez condense e atraia “uma feição sentimental que estreita vizinhos e amigos; adormecem ódios e renascem motivos de vida e esperança”. Por isso, as Missa do Parto são do povo, da colectividade anti-selectiva, da massa anónima que ocupa, por direito próprio, o “átrio dos gentios”. Pela mesma razão, não há figurinos nem paradigmas, não há especialidades sociais, muito menos político-eclesiásticas. “Cada terra com o seu uso, cada roca com o seu fuso”. E deveríamos, mesmo, preservar a singularidade de cada lugar, para que o parto da vida ganhe mais autenticidade e convicção naqueles que participam. As modernas redes de comunicação, sobretudo as mais interessadas na publicitação dos seus produtos, acabaram por tomar conta daquilo que nasceu puro e mobilizador. Não deixa de ser abusivo que segmentações classistas e entidades oficiais se apropriem, de um património cultural em que o povo é protagonista e autor. Fazem lembrar aquelas graduadas figuras partidárias em manifestações em que só aos trabalhadores e seus representantes, os sindicatos, pertence agir e autonomamente liderar. Há quem ainda não tenha descoberto o ridículo de ser “festeiro” no verão e “parteiro” no inverno.
E cantemos todos, cada qual no seu refrão:”Virgem do Parto, oh Maria!”
17.Dez.14
Martins Júnior
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