Ai,
o nosso juízo! – diz o povo na análise empírica, mas meticulosamente cirúrgica,
de certas linhas desviantes do pensamento. E não se enganou o filósofo
Montaigne quando, já no século XVI, classificou a nossa cabeça como a louca da
casa, “la folle de la maison”.
Foi
o que me aconteceu hoje. Estando eu em dia de sábado excogitando os textos que
habitualmente se lêem aos crentes para daí extrair feixes de luz perene, eis
que me achei caído, como Daniel profeta, na “cova dos leões” ou, como Ulisses,
nas ondas revoltas “entre Cila e Caribdes”, em risco de ser devorado em terra
ou engolido no mar, sem saber como escapar. No fim, ver-se-á o logro em que
naturalmente tudo isto vai dar.
O
texto a que me refiro tem a chancela de Lucas (5, 1-11) e de Mateus ($, 18-21,
ambos testemunhas presenciais dos acontecimentos. O cenário é o mais aberto que
se possa imaginar, transparente e sugestivo: uma praia, gente apinhada no ‘calhau’,
canoas ancoradas perto da costa. Entre a multidão está um homem meão, rosto
tisnado do sol da Palestina, trinta anos de idade. Conversa com os conterrâneos (todos o
conhecem) e, de seguida, tocado por um palpite que encontra eco em seu redor,
pede aos pescadores que lhe dêem ‘boleia’ numa canoa. Já dentro dela, afasta-se
um pouco, o suficiente para que o seu olhar abarque todo aquele maravilhoso anfiteatro
humano. E começa a falar à multidão. Que fascínio e que beleza! Mais que
romântico, ecológico, quase irreal: a catedral – a natureza; a abóbada – o céu
azul: o alicerce – a terra e o mar num abraço aquático sem fim; o púlpito – uma
canoa pobre, pão de pobres, balouçando suavemente à beira-lago. Entendam,
pregadores purpurados, mitrados, rubicundos dos barrocos púlpitos, entendam e
aprendam o poder e eficácia da verdadeira Oratória Sacra!... Por mim, juro que
daria toda a minha vida só para estar no
meio daquela gente, sentado naquelas pedras como se fora o ‘calhau’ da minha
baía, vendo e ouvindo o Irmão, o Doce Nazareno, “que seduzia as multidões”, no dizer de Diego Fabri.
Estou
quase a perder-me pelo caminho. Porque o “caso” de hoje é outro. Trata-se de
acompanhar o espinhoso processo que o Nazareno utilizou para escolher colaboradores. Tudo na sua vida são episódios
singulares de um projecto maior: “transformar a face da terra”, purificar as
mentalidades, corrigir as leis, sublimar os costumes, enfim, recolocar o Homem
no seu legítimo pedestal primeiro. Numa palavra, dignificá-lo, o mesmo que
dizer, salvá-lo. Plano utópico, gesta intangível, épica, diríamos que megalómana,
se não fosse esse o maior sonho que a humanidade possa conceber!
Maiores,
porém, que o sonho foram os obstáculos pré-determinados. À época, criar um
movimento de âmbito sócio-religioso significava aquilo que hoje se chama
partido político. Ao tentar fazê-lo, o líder Nazareno estava atentando contra
os “partidos-seitas” vigentes: os fariseus, os saduceus, os zelotes, os
herodianos, os samaritanos e, acima destes,
os todo-poderosos Sumos-Sacerdotes do Templo Judaico de Jerusalém,
símbolo e sede da dinastia de David, sacerdote, profeta e rei. A quanto se
atrevia o “filho do carpinteiro” de Nazaré!
Tarefa
árdua, a inicial: pesquisar e descobrir gente credível, límpida de costumes,
aceite pelos contemporâneos, inquebrável
diante dos adversários já organizados. Quantas as noites de insónia, de avanços
e recuos, de esperanças mortas à nascença, de altas e baixas expectativas, teve
o Mestre para formar (diríamos hoje) a “sua lista”. Para cúmulo, não tinha
lugares, benesses ou prebendas para lhes prometer em troca da aceitação.
Como
fazê-lo? Passou à acção. Foi ao terreno, acompanhou operários, camponeses e
pescadores, vizinhos seus, amigos e novos simpatizantes. Os convites, fazia-os
pessoalmente, cara-a-cara com os eventuais apoiantes. Mateus e Lucas não
referem se levou alguma nega, mas é muito provável que tal tenha acontecido.
Uma nota impressiva: os possíveis aderentes, surpreendia-os quase sempre no próprio local de trabalho.
Foi, precisamente, o caso de hoje. Depois de falar â multidão, sugeriu aos
donos ou companheiros da lancha uma pesca no “Mar da Galileia”. Durante essa noite
deve ter testado mais de perto a personalidade de cada um deles e, chegados a
terra, endereçou-lhes directamente o desafio: “Vou fazer de vós pescadores de
homens”. E logo viu o fruto gostoso de toda essa tarefa pessoal de análise e
prospecção: “Eles imediatamente deixaram o barco e as redes e seguiram a Jesus”.
Muito
mais havia que aditar para compor o episódio de hoje e o quanto de autêntico e
profundo nele se subentende. Deixo à livre interpretação de quem lê. Até porque
não quero cair em covas de leões nem nas costas de Cilas ou Caribdes. Estão a
aproximar-se, segundo a meteorogia sócio-política, as agitadas alterações
climáticas que normalmente produzem as cobiçadas “listas” . E feitas as contas,
os textos de Lucas e Mateus talvez possam proporcionar lições de excelente propedêutica,
para bem dos responsáveis e de toda a sociedade.
Afinal,
tinha razão Montaigne: “Notre tête – la folle de la maison”. Sem aviso prévio,
o discorrer livremente levou-me até onde não contava chegar.
09.Fev.19
Martins Júnior
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