domingo, 17 de fevereiro de 2019

SERMÃO DA MONTANHA OU TOQUE A REBATE ?


                                                         

É este o “cantinho do domingo”, a ponte pênsil entre uma semana e outra. Como a chuva miudinha – a  verdadeira chuva fértil -  que durante todo o dia irrigou as terras neste 17 de Fevereiro, assim um pensamento luminoso inundou todas as folhas deste “Livro de Horas” que em nós habita, mesmo que nem sempre demos por ele. Há quem lhe chame o Discurso das Bem-Aventuranças ou o Sermão da Montanha. Melhor seria, após uma visão mais objectiva, traduzi-lo como um outro “Discurso do Método” ou um autêntico “Observatório Social”, que põe a nu as contradições e o desconcerto do mundo, ao mesmo tempo que condena ou absolve os conteúdos comportamentais das sociedades. É o Direito Penal Natural em acção.
Uns são pobres (no caso vertente, em espírito), outros transpiram riqueza. Uns choram, outros riem, Uns são os famintos perpétuos, outros os sardanapalos arrotando fartura nos divãs. Uns são os que vivem para o espectáculo público e granjeiam os aplausos de toda a cidade, outros ficam sempre na sombra, invectivados, apedrejados pelos donos da opinião pública. Eis o cenário do “Grande Teatro do Mundo”. Quem o descreve?... Será surpresa para alguns, mas não é o grande dramaturgo Calderón de la Barca. O autor deste atlas social é, precisamente, o Nazareno, o histórico líder da Galileia. (Lc.6,17.20-26).  Mas não se satisfez com o mero estatuto de líder histórico. Passou a ocupar a tribuna de juiz revolucionário e aplica as mais rigorosas sentenças aos causos em apreço.
Aos primeiros – os pobres, os famintos, os humilhados e ofendidos chama-lhes “felizes”, na perspectiva futura de um dia voltarem o mundo do avesso e alcançarem o que lhes foi negado. Aos segundos, os anafados exploradores dos pobres, os adulados e aduladores, “os vampiros que chupam o sangue fresco da manada, os que comem tudo e não deixam nada”, a esses o Legislador, “filho de carpinteiro”, comina-os, sem apelo nem agravo, com a pena máxima da maldição. “Ai de vós, que agora rides, lá chegará o dia de chorardes; Ai de vós, que  agora vos fartais na opulência,  também conhecereis o tempo da miséria e da fome. Ai de vós”!...
Na interpretação claudicada e mole dos textos citados (e que hoje foram lidos em quase todo o mundo) costumam os pregadores oficiais dar uma visão suave, romântica, imobilista do chamado Sermão da Montanha, esquecendo ou propositadamente obliterando os consequentes efeitos, imperativos e musculados, destas gritantes desigualdades sociais: uns serão sobejamente ressarcidos, os outros severamente punidos. Aliás, é o mesmo narrador Lucas que transcreve, em discurso directo, a saudação proclamatória que a jovem Maria espontaneamente soltou quando um dia foi visitar a, então grávida, prima Isabel que habitava nas montanhas de Judá: “Viva o Senhor, Viva! Porque derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes da terra. Viva! Porque encheu de bens os famintos e aos ricos despediu-os sem nada”! (Lc.1,52-53).
    Não é esta uma citação avulsa de qualquer “Livro Vermelho” ou de um clássico Manual de luta de classes. É do Livro, por excelência, a Bíblia. Lamentável e, até mesmo, condenável a manipulação que os autoproclamados anunciadores da Boa-Notícia fazem da mensagem original, essa capciosa tentação de reduzir a personalidade de Cristo à delicada imagem do “Doce Nazareno, de olhos ternos, azuis”, na sequela estilística  de Ernest Renan. Não é mais possível uma tão redutora e apoucada interpretação do nosso Libertador. Ele veio “renovar a face da terra”. E não foi  nem será com altares-baús cheirando a naftalina nem com crepes efeminados em punhos de renda. Haverá, por certo, quem não elogie e até condene esta linguagem. Mas aí, Ele já nos deixou o pré-aviso que tem toda a força de um salvo-conduto: “Ai de vós, quando todos os homens vos elogiarem”!
Numa época em que a vaga dos populismos invade os próprios templos e delírios triunfalistas tomam conta das cascas de noz de muitos corações, faz bem regressar a um outro “Discurso do Método” de pensar e agir que nos é dado pelo meticuloso “Observatório Social” do eterno Sermão da Montanha.

17.Fev.19
Martins Júnior    

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