Fosse
ele jesuíta ou franciscano, agnóstico ou ateu…Fosse diplomata ou pária, embaixador ou refugiado…Fosse ele “Imperador
da Língua Portuguesa” ou escravo dela – pouco me interessaria nesta hora. Só
sei que vou ficar de vigília até que o sol
rompa, na próxima madrugada, porque outro Sol Maior há-de abrir as cortinas
daquele dia extenso que mede mais de quatrocentos anos!
Impossível
voltar a folha do 5 para o 6 de
Fevereiro e ficar indiferente.
Impossível esquecer Alguém que ilumina
todo o mendo, mais intensamente Portugal
e Brasil, desde esse instante em que pela
mão de Maria de Azevedo, lisboeta, e de Cristóvão Vieira Ravasco, filho de pai
alentejano e de mãe mulata, pisou chão português um infante-gigante , de nome António.
Mais
que todos os altos predicados com que possa colorir o seu dia, importa-me vê-lo
hoje, global e inteiro: a Torre de
menagem do passado, o Referencial do presente, o Profeta do futuro! Quero
vê-lo, afrontando de rosto aberto os abutres jesuítas da Inquisição. Vê-lo diante
de reis e delatores, defendendo a liberdade religiosa (há quatro séculos!) contra
a perseguição aos judeus e “cristãos novos” sentenciados e expulsos de
Portugal. Quero vê-lo, ainda, no escaldante e mísero Nordeste do Brasil,
bradando vigorosamente pelos direitos do índios e negros brasileiros. E vê-lo, também, ele mesmo,
atravessando numa piroga o rio Amazonas para valer aos pobres indígenas e, por
via disso, ser expulso do Maranhão pelos senhorios fazendeiros, todos
portugueses, que escravizavam as
populações.
Ele,
“O Imperador da Língua Portuguesa” (digo-o agora com Fernando Pessoa)
percorrendo o sertão, matando a sede em águas insalubres, deitado numa enxerga
de capim, trincando a mandioca e as tâmaras silvestres, veste picada esfarrapada
pelos atritos da selva, enfim, um ‘índio” feito entre os índios nordestinos. E,
mais que tudo, a Voz, aquela voz que na mata imensa brilhava e soava mais alto
que nos púlpitos da Capela Real da
capital do Império, onde fora pregador régio. Apetece-me deixar de lado o
teclado e ficar assim, absorto, contemplativo (eu que já experimentei a mesma
geografia agreste da floresta moçambicana) e imaginar, fazer repercutir dentro de mim o
timbre metálico e doce dos indígenas quando se lhe dirigiam, em dialecto tupi, com a expressão Paíaçu – “Grande Pai ou Grande Padre”.
Enquanto
aguardo a manhã, recorto e memorizo, em síntese, dois rasgos de eloquência e
coragem:
Contra
a realeza e a nobreza brasonada, o “Sermão do Bom Ladrão”, na famosa igreja da
Misericórdia, em Lisboa, em que o Pregador Régio equipara aos ladrões os
próprios monarcas, príncipes e ministros:
“Antigamente eram os ladrões que pendiam do
alto das cruzes. Hoje, são as cruzes que
pendem do peito dos ladrões”.
Contra
os titulares das “Misericórdias”, em São Luís do Maranhão. que só serviam para mandar
enterrar os mortos, pois não havia nem hospital nem enfermaria: “Bom seria não haver igreja e haver
hospital. Mas se não houver outro modo, converta-se esta igreja em hospital,
que Deus ficará mui contente disso”.
Chamo
aqui Eça de Queirós, quando se referia ao seu colega do “Grupo dos Cinco”,
Antero de Quental, e cognominava-o de “Santo
Antero”, porque este tinha já afirmado que “na grande marcha da história, o
Santo é aquele que vai à frente”. Na perspectiva
de Antero, o conceito de “Santo” ultrapassava a visão pietista vigente e envolvia
o universo da perfeição omnímoda do ser humano.
Na
mesma altitude de pensamento, o Padre António Vieira merece, com absoluto
mérito, o título de “Santo”. Ainda ninguém propôs ao Vaticano tal iniciativa.
No entanto – espantoso! - a Igreja Anglicana Brasileira estabeleceu o dia 18 de
Julho (data da sua morte, em 1497) como a Festa Litúrgica do Santo Padre
António Vieira”! Belo e justo testemunho, sobretudo vindo de onde veio.
Em
contraste, imensa, inconsolável será a mágoa do Grande Missionário do sertão
nordestino, ao constatar que todos os
seus esforços, os seus confrontos, o seu martírio de há 400 anos encontraram no
século XXI a total negação nos programas
e leis draconianas de exclusão e racismo produzidos em solo brasileiro. Oh, se
voltasses de novo!...
05.Fev.19
Martins Júnior
Em cada noite que o autor deste blogue passa mergulhado no doce profundo das letras, oferece-nos gratuitamente uma nova refeição para a marcha da vida. Parabéns amigo pelo texto.
ResponderEliminar