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pela manhã estava escrito no meu travesseiro o Canto uníssono de Vinicius de Morais (Operário em construção) e de Zeca Afonso, hoje, o Dia da sua Memória.
Os dois cantautores --- pessoas e não imagens --- acompanharam-me todas as
horas do dia, pintadas de cravos vermelhos, mensageiras da poesia e da
liberdade. Sempre vivo, Zeca Afonso!
Retomo
agora o fio à meada, anteontem iniciada,
sobre a Visita da Imagem Peregrina. Nem de propósito: ao terminar essas minhas
considerações, ponho em dia a leitura da imprensa nacional e com
incontido gáudio da minha parte vejo o grande teólogo e pedagogo Frei Bento
Domingues, na sua crónica semanal, sublinhar esta verdade insofismável: “A
idolatria confunde a imagem com a realidade”. Não teria desejado melhor prémio
para o meu esforço. Porque, se bem vos recordais, foi esse o meu alerta perante
a euforia, quase o frenesi, que a Visita tem suscitado. Como prometido, continuo
hoje a caminhada, em vossa companhia, tentando desvendar e distinguir a
diferença entre a racionalidade e a emotividade que tais eventos são
susceptíveis de provocar.
Estou
a referir-me sempre à Imagem que comprime as multidões e à qual se dirigem
encendradas preces de milagres em
carteira. Houve até um clérigo que em determinado estabelecimento de ensino se
dirigiu aos alunos nestes termos: “Rezem-lhe para passar nos exames”…
Mas
não foi esse o almejado rasto milagreiro que a Imagem deixou na Madeira. Pelo
contrário, foi na vigência da Imagem que, em Fevereiro de 2010, os madeirenses
conheceram a maior tragédia do século XX: um cenário apocalíptico de destruição
e morte. Casas, campos, pessoas, adultos, e até crianças inocentes, um rosário
tétrico de horrores sumidos na voragem das águas bravias. E, agora, em 2016, a
Imagem não foi o melhor “seguro contra terceiros”. Outra vez, pelo contrário:
as ameaças atmosféricas, os temores adormecidos, aeroportos fechados, milhares
de estrangeiros impedidos de comparecer ao trabalho, estradas e escolas
encerradas, adiada a festa da anona e até a própria bola aprisionada, com os
clubes em compasso de espera. Pela aragem, não foi simpática a carruagem, nem
auspiciosa a Imagem. Remontando à história lusa, atribuiu-se ao Mestre de Avis, D. João I, o cognome de “Rei,
de Boa Memória”. Mas, pela evidência dos factos, a Imagem (é dela que falo) dificilmente
escapará ao subtítulo de “Rainha, de Má Memória” . Contra factos não há
argumentos.
Para encobrir a “maldição”
que caiu sobre a ilha, o coro oficial da “tragédia” entronizou no pódio dos
milagres uma imagem que, disseram e dizem, “milagrosamente escapou à fúria da
tempestade”. TRADUZINDO EM VERNÁCULO: a Peregrina Imagem teve mais amor ao gesso do seu pseudo-retrato
do que à vida de quarenta e dois filhos seus, incluindo crianças indefesas!!! Se acaso alguma mãe me estiver a ler, consulte
o seu instinto maternal e pergunte se seria
capaz de preferir salvar da tempestade o
seu retrato em vez de salvar um filho! Nem a sentença salomónica consentiria. Concluamos
o raciocínio lógico: se uma mulher
pecadora seria incapaz de tal barbaridade, achais que a Imaculada Mãe, a mais perfeita de todas, cairia em tal
aberração contra-natura?... Tenha senso na cabeça o coro clerical e tenha tento na língua para não ofender mais
a Senhora. Incriminem, se quiserem, a Imagem, (que é o que têm sub-repticiamente escondido) mas não ofendam a Senhora. Retomo Frei Bento: ”A
idolatria confunde a imagem com a realidade”.
A Imagem teve honras de Estado à saída
do portaló do avião. E os homens levaram-na por onde quiseram: praças públicas,
templos altaneiros, escolas do ensino privado. Os acólitos governantes, os
polícias de farda de gala, os motards, os bombeiros de luvas brancas. Ai, se a Senhora falasse --- se fosse Ela, a
própria --- teria desprendido as mãos, saltaria do andor e diria aos
governantes faltosos: “Levem-me aos locais da tragédia de 2010… às quarenta e
seis casas que ainda estão por reconstruir… às mães que perderam os filhos… aos
filhos que perderam as mães … às vítimas que ainda sobrevivem”.
Mas não é a Senhora que ali vai, às ordens
dos feitores do trono e do templo. Nem estes ouviriam, afogariam até, a sua voz angustiada, se ela falasse. Aliás, tenho a convicção (como
disse, um dia, em Fátima a quem, a meu
lado, contemplava a multidão alçada em lenços brancos) se Maria de Nazaré ali
--- e aqui --- passasse, a pé, trajando na simplicidade e humildade das
mulheres da sua aldeia, os “senhores de proa” teriam vergonha de acompanhá-la. E
Ela, agora parafraseando o Pe. António Vieira, Ela “ficaria mui contente disso”.
Termino, voltando a algumas críticas
feitas ao texto do Pe. José Luís
Rodrigues, que motivaram estas considerações e às quais me apetece aplicar o
veredicto do citado Frei Bento Domingues: “Acabam por sacralizar o ridículo”. Padre
José Luís Rodrigues é um estudioso da Fé (já publicou um livro sobre o tema) e
se quisesse ficaria calado, iludindo os crédulos, alimentando superstições,
vendendo velas e locupletando-se à pala dos sentimentalismos doentios das
devoções. Mas, porque é sério e tem a coragem de caminhar ao encontro da Verdade,
ei-lo a esclarecer as almas de boa-fé. Bem haja!
23.Fev.16
Martins Júnior
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