Uma
onda de euforia gregária está a tomar conta da ilha. E todas as artes
comunicacionais estão a ampliar o batente gravitacional que sai da Imagem
Peregrina e provoca sinais de sentido contrário: nuns a emoção contagiante,
noutros a razão analítica. Tenho algo a acrescentar às propostas lógicas que, a
propósito, teci nos dois anteriores “dias
ímpares”, mas deixarei tudo para depois de
passar a onda. O ruído espectacular toldeia o pensamento, que se quer atento e
sereno.
Outros
espectáculos, porém, começam a abrir o pano do teatro insular: as Sextas-feiras
da Via-Sacra e os Domingos do Senhor dos Passos. Teremos, então, de um lado, a
Mãe em estrepitoso périplo triunfante e, do outro, o Filho, mísero condenado
a arrastar pelas ruas de Jerusalém ( em todas as cidades há uma Jerusalém
latente) o cadafalso do seu próprio assassinato. Digo assassinato e não digo
suicídio, porque o que vai comemorar-se é um crime de sangue, perpetrado no
patíbulo do “Monte da Caveira”, o Calvário.
Não
levarão a mal os meus amigos e amigas
que me ocupe de mais um assunto de inspiração bíblica, pois que eu próprio, em
todas as sextas da Quaresma, também sigo
a “Via Crucis” no recinto contido onde
me situo com os participantes no mesmo inquietante percurso. E, mais uma vez, deparo-me
frente ao duplo reflexo do fenómeno
ocorrido com a Imagem: nos dependentes da emotividade primária, possui-os o
sentimentalismo culpabilizante, atenuado pela dimensão do espectáculo de rua;
noutros, os que têm a coragem da análise histórica, prende-os a totalidade
factual do acontecimento, em busca da resposta a três questões fundamentais:
Quem matou?... Porquê?... Para quê, ou, por outras palavras, quais os efeitos
directos e indirectos, imediatos e futuros?...
Não
será revelação de monta para ninguém se disser que, na generalidade dos casos, as
representações dos Passos têm a intencional e premeditada preocupação de criar
no consciente e subconsciente dos crentes um ambiente de desolação quase mórbida,
de autoflagelação psicológica (“Jesus morreu por minha causa”) levada aos
paroxismos da depressão, como no filme de
Mel Gibson, ou no insistente exibicionismo de um crucificado,
derrotado e desnudo, ou ainda nas
aberrantes crucifixões, ao vivo, nas
Filipinas, das quais pretendem aproximar-se os espectáculos incruentos de
certas manifestações de rua, reposição de ambientes medievais para crânios
ávidos do “esquisito” e vazios de pesquisa histórica.
Por
uma questão de coerência crítica, tenho de respeitar a sensibilidade de cada
qual, mas aos profissionais de lágrimas alheias e semeadores de complexos de
culpa, apenas recordarei a coragem estóica do mártir J.Cristo quando se dirigiu
às mulheres de Jerusalém que, entre portas, choravam à sua passagem: “Por mim
ninguém chor… Chorai antes por vós, pelos vossos filhos… e se isto fazem à
lenha verde, que não farão à lenha seca”?! Que tremendo aviso à sociedade para que não
deixe que os poderosos matem mais os
mensageiros da Verdade!
E aqui já se entra no primeiro patamar dos socalcos
que levam até ao local do crime, o Calvário: Quem matou?... Escusado será dar
voltas ao prego, basta a leitura linear do texto bíblico para termos a resposta
inequívoca: Foram os detentores do poder, conluiados na mesma trama maquiavelicamente
orquestrada - o poder político, consignado em Pilatos, e o poder religioso dos
Sumos-Sacerdotes Anás e seu genro Caifás. Da interpretação literal do mesmo
texto fica a saber-se que o autor material da sentença de morte foi o
governador Pôncio Pilatos, mas o autor moral e o mais perverso foi o Templo de
Jerusalém, a religião oficial. Sempre na sombra, nos bastidores da Lei, foi
este poder religioso que, pela calada da noite,
organizou os “jagunços” que
gritaram diante do tribunal público: “Mata esse Cristo e liberta Barrabás”. E
foram esses poderes “sagrados” que
ameaçaram Pilatos se não lavrasse a sentença fatal, sem corpo de delito nem matéria de acusação
formada: “Não vejo culpa nenhuma neste homem”.
Seria
um bom acto de fé e merecida homenagem ao Grande Mártir injustiçado se investigássemos a fundo esta Primeira
Estação. Chegaríamos à conclusão de que
permanece enraizada, como sina e maldição, no corpo das sociedades humanas o monstro
ancestral da Inquisição: sempre o poder religioso entregando ao poder político
os que lhe são indesejáveis para exterminá-los em fogo e sangue.
É
contra esse “status quo” de todos os tempos que o nosso J.Cristo manda lutar,
quando constantemente repete aos nossos ouvidos o grito que os poderosos querem
abafar: “Por mim ninguém chore!. Por vós, sim. Pelos vossos filhos”!
A
Via-Sacra é dinâmica, não é passiva. Por isso, dispensa espectadores, exige
intervenientes que mudem o rumo da História. A nossa, também.
25.Fev.16
Martins Júnior
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