Ninguém
levou a mal o Cardeal. Ele também direito ao seu Carnaval. E é assim:
Um
homem e uma mulher – um caso exemplar de casal católico romano - acordam de manhã, juntos. Vão à missa, juntos.
Trocam dois beijinhos à porta da igreja. Almoçam, juntos. Preparam o jantar,
juntos. E juntos ceiam um chá de frutos vermelhos, à luz das velas onde fumegam cios de amor romântico. Mas à
noite, encomendam-se às almas e, de repente, lá vem o fantasma das trevas: “Amanhã,
vamos comungar, amor. E não podemos fazer amor, juntos. Somos mais que frade e freira, somos dois
irmãos. Chama-se o Cardeal que, sendo clementíssimo, vai comprovar a nossa “abstinência”.
E lá vem o homem, de cinta vermelha e mitra
aureolada. E lá ficou a noite inteira, episcopus
vigilante, entre marido e mulher recasados, como sentinela alerta e de
báculo em riste”. No outro dia, manhã
cedo, lá entraram no portão da igreja, anjo-macho e anjo-fêmea, abrindo as
bocas abstinentes à santa hóstia. O Cardeal sorria, como que penetrado do gozo
transbordante de uma terça de carnaval.
E
assim se fez a postura, o rescrito ou o decreto do Soberano-mór da religião
portuguesa. “Os recasados praticarão a continência sexual, sob pena de não
poderem tomar a hóstia.”
Ninguém
levou a mal – por ser carnaval. Como tal, também a mal não levarão o que, sobre
o caso, direi qual.
É
assim a ‘nossa’ Igreja. Nossa, talvez não tanto, mas a dele, Cardeal. Como
enguia movediça, fura e perfura tudo até ao tutano. E bota palavra e censura e
condena. Sem sequer dar pelo ridículo em que se enreda. Vem de longe o nariz
totalitário de pôr carimbo em tudo. Até nos mais íntimos recônditos da
sensibilidade alheia. Os teólogos vão ‘virando’ sexólogos e os sexólogos vão ‘virando’
teólogos.
Jamais
esquecerei aquela resposta de um civil, emigrante industrial em Moçambique, no
ano de 1968, quando entre civis e militares se discutia a encíclica Humanae Vitae do Papa Paulo VI, a propósito da condenação
uso do contraceptivo: “Ó capelão – interpelava-me o homem – você que é um jovem,
diga-me o que é que o Papa ou a Igreja têm que se meter na alcova do casal”?
Arrasou-me.
Mas fiquei-lhe intimamente grato pela lição que me deu naquele momento e que me
serviu de guião até hoje. A educação sexual produzida nos seminários tem sido de
uma morbidez insanável, diabolizando a mulher, castrando jovens, criando
labirintos de escrúpulos que depois desembocam em degradantes escândalos. E não
sabe mais sair deste “nó de víboras”
(cito François Mauriac) que muitos clérigos trazem no seu subconsciente.
Melhor
seria o nosso Clementíssimo Prelado ter-nos poupado a este naco de carnavalinho
de beco. Sobretudo, vindo de quem vem. Outra emoção positiva e sublimada teria
o portuguesíssimo Cardeal Gonzaga, da Ceia
dos Cardeais, do nosso Júlio Dantas, quando exclamava diante dos seus dois colegas: “Oh, como é diferente o amor em
Portugal”.
Mas é
carnaval. Não só “o de três dias”, mas o
do resto do ano e o de certas encenações, ditas solenes, que nem demos por
isso. Volto a abrir parênteses para dar a palavra a um amigo (já não está cá)
que explicava a um outro, estrangeiro de visita à Madeira, o significado de uma
grande Procissão, que na altura ainda passava em frente do antigo Banco Madeira
(hoje, o Santander), com autoridades civis, militares, pompa e circunstância e
fechava com Bispo da Diocese, faustosa e exoticamente engalanado. O estrangeiro, julgando que se tratava de um
corso alusivo, apontou para o prelado e, como quem faz uma descoberta, exclama entusiasticamente: Oh, the King of Carnival!
Recomenda-se a quem de direito e de responsabilidade
o favor de não fazer cenas de carnaval, porque em vez de saúde e alegria só dão
doença e tristeza.
09.Fev.18
Martins
Júnior
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