sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

O EMINENTÍSSIMO E CLEMENTÍSSIMO CARNAVAL DO CARDEAL

                                                               

Ninguém levou a mal o Cardeal. Ele também direito ao seu Carnaval. E é assim:
Um homem e uma mulher – um caso exemplar de casal católico romano -  acordam de manhã, juntos. Vão à missa, juntos. Trocam dois beijinhos à porta da igreja. Almoçam, juntos. Preparam o jantar, juntos. E juntos ceiam um chá de frutos vermelhos, à luz das velas  onde fumegam cios de amor romântico. Mas à noite, encomendam-se às almas e, de repente, lá vem o fantasma das trevas: “Amanhã, vamos comungar, amor. E não podemos fazer amor, juntos.  Somos mais que frade e freira, somos dois irmãos. Chama-se o Cardeal que, sendo clementíssimo, vai comprovar a nossa “abstinência”. E lá vem o homem, de cinta vermelha e  mitra aureolada. E lá ficou a noite inteira, episcopus vigilante, entre marido e mulher recasados, como sentinela alerta e de báculo em riste”.  No outro dia, manhã cedo, lá entraram no portão da igreja, anjo-macho e anjo-fêmea, abrindo as bocas abstinentes à santa hóstia. O Cardeal sorria, como que penetrado do gozo transbordante de uma terça de carnaval.
E assim se fez a postura, o rescrito ou o decreto do Soberano-mór da religião portuguesa. “Os recasados praticarão a continência sexual, sob pena de não poderem tomar a hóstia.”
Ninguém levou a mal – por ser carnaval. Como tal, também a mal não levarão o que, sobre o caso,  direi qual.
É assim a ‘nossa’ Igreja. Nossa, talvez não tanto, mas a dele, Cardeal. Como enguia movediça, fura e perfura tudo até ao tutano. E bota palavra e censura e condena. Sem sequer dar pelo ridículo em que se enreda. Vem de longe o nariz totalitário de pôr carimbo em tudo. Até nos mais íntimos recônditos da sensibilidade alheia. Os teólogos vão ‘virando’ sexólogos e os sexólogos vão ‘virando’ teólogos.
Jamais esquecerei aquela resposta de um civil, emigrante industrial em Moçambique, no ano de 1968, quando entre civis e militares se discutia a encíclica Humanae Vitae  do Papa Paulo VI, a propósito da condenação uso do contraceptivo: “Ó capelão – interpelava-me o homem – você que é um jovem, diga-me o que é que o Papa ou a Igreja têm que se meter na alcova do casal”?
Arrasou-me. Mas fiquei-lhe intimamente grato pela lição que me deu naquele momento e que me serviu de guião até hoje. A educação sexual produzida nos seminários tem sido de uma morbidez insanável, diabolizando a mulher, castrando jovens, criando labirintos de escrúpulos que depois desembocam em degradantes escândalos. E não sabe mais  sair deste “nó de víboras” (cito François Mauriac) que muitos clérigos trazem no seu subconsciente.
Melhor seria o nosso Clementíssimo Prelado ter-nos poupado a este naco de carnavalinho de beco. Sobretudo, vindo de quem vem. Outra emoção positiva e sublimada teria o portuguesíssimo Cardeal Gonzaga, da Ceia dos Cardeais, do nosso Júlio Dantas, quando exclamava diante dos seus  dois colegas: “Oh, como é diferente o amor em Portugal”.
  Mas é carnaval.  Não só “o de três dias”, mas o do resto do ano e o de certas encenações, ditas solenes, que nem demos por isso. Volto a abrir parênteses para dar a palavra a um amigo (já não está cá) que explicava a um outro, estrangeiro de visita à Madeira, o significado de uma grande Procissão, que na altura ainda passava em frente do antigo Banco Madeira (hoje, o Santander), com autoridades civis, militares, pompa e circunstância e fechava com Bispo da Diocese, faustosa e exoticamente engalanado.  O estrangeiro, julgando que se tratava de um corso alusivo, apontou para o prelado e, como quem faz uma descoberta,  exclama entusiasticamente: Oh, the King of Carnival!
         Recomenda-se a quem de direito e de responsabilidade o favor de não fazer cenas de carnaval, porque em vez de saúde e alegria só dão doença e tristeza.

         09.Fev.18
         Martins Júnior


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