É a ‘Ordem de
Trabalhos’ exclusiva para esta semana: o Processo.
Logo vem-nos à memória Franz Kafka e o seu
protagonista que acabou condenado à
morte, sem saber porquê, entre dois verdugos. Sem saber porquê!!! – eis a
grande questão que deve colocar-se à tragédia ocorrida há dois mil anos.
O
caso, não sendo actual, mexe com a
actualidade, seja a nível sociológico, religioso, turístico-económico, mas
acima de tudo em termos de análise histórica. Até porque importa separar as
águas – águas turvas – em que se submerge um fenómeno, envolto como está numa redoma híbrida, isto é, entre o
sagrado e o profano, o místico e o sensorial, entre o religioso e o estritamente
histórico.
Na
hermenêutica puramente sacro-bíblica, Jesus tinha o destino marcado, que se reconduz
a esta tese: Deus Pai, ofendido pela desobediência de Adão e Eva, exigia a
morte do próprio Filho, único preço com o qual sentir-se-ia desagravado e, daí,
reabrir o caminho da salvação para todos os humanos. Portanto, toda a trama – digamos,
processo – da literatura e da história judaicas, (profética, didáctica,
simbólica) dirige-se inelutavelmente ao assassinato de Jesus. Uma questão nada consensual
entre os teólogos, mas que tem sido dogmaticamente proclamada pela Igreja, há
mais de dois séculos.
Mas,
seja qual a credibilidade da tese religiosa, há a factualidade processual: o
Réu teria de ser julgado e condenado. o que pressupõe acusação, testemunhas,
juiz e sentença transitada em julgado. O modo de aplicação da pena e toda a
pressão (os lobbies) são peças importantes em todo o processo. E é neste
contexto que deverá tentar-se a compreensão aproximada dos factos.
Por
mais voltas que se dêem em redor da vida e obra do Nazareno, dois polos inamovíveis permanecem
em todos os seus passos: por um lado, a defesa e a elevação dos oprimidos e deprimidos
da sociedade e, por outro, a hostilidade das classes dominantes, com a notória atitude
de afrontamento mútuo, sobretudo por parte dos pontífices máximos da Sinagoga,
os Sumos-Sacerdotes Anás e Caifás, aos quais se juntavam fariseus, doutores da
lei, escribas. Politicamente, advogava insistentemente o primado do Direito e
da Justiça, mas não se envolvia directamente nas tentativas do derrube do
colonialismo romano, lideradas por Juliano, chamado o ‘Apóstata’. O seu ideário
ultrapassava as raias do imediato .controlo político, visava antes a raiz do pensamento,
a mentalidade vigente, imposta pelos poderosíssimos ditadores do Templo de
Jerusalém. Quem seguir atentamente o
relato evangélico verificará as constantes permutas de arremesso verbal entre
Jesus e os emissários do Templo, com acusações de uma rudeza primária, quase
tribal: “Tu és o diabo em pessoa”, diziam contra ele. E ele logo ripostava:
“Vocês são uns hipócritas, sepulcros caiados de branco por fora, mas podres por
dentro”.
Durou três
longos anos esta animosidade sem tréguas, exacerbando-se o ambiente com incisivas
atitudes de Jesus, a cura do cego de Jericó, a ressurreição de Lázaro e a
portentosa manifestação de Domingo de Ramos, interpretada pelas instâncias
superiores como uma intentona-golpe de estado em marcha. Aí começou a operação
fatal, estratégias clandestinas, espionagem de todos os passos e lugares frequentados,
subornos selectivos, de que é paradigma pidesco o caso de Judas. Ciente do peso da sua magistratura de influência em toda a Judeia, o pontífice Caifás (imaginemos
o patriarca moscovita Kirilos) não terá descurado
conversações diplomáticas com o poder político, representante do Império, sobre
a situação da colónia alarmada com o perigo público chamado ‘profeta agitador da
Galileia’.
Montado
o plano, segue-se-lhe a execução meticulosa: pela calada da noite, os guardas
do Templo procedem à prisão no preciso lugar onde o ´procurado’ costumava
retirar-se, tudo com o ‘guia-cicerone’ Judas a identificar Jesus na escuridão
nocturna. Para que não fosse acusado de imiscuir-se na área da jurisdição
política, reservada a Pilatos e Herodes, o Sumo-Sacerdote Caifás chama-o ao
tribunal religioso e condena-o. Entretanto, usando a mestria da hipocrisia
religiosa, reconhece que não está nas suas mãos o objectivo mais ambicionado -
a pena capital – e envia-o a Pilatos.
A
abertura do Pretório, o tribunal civil, durante a noite (para os historiadores
considerada ilegal) dá início ao julgamento, que corre mal às pretensões do
poder religioso, quando Pilatos conclui: “Não vejo nenhum crime neste homem. Pelo
Código Penal Romano, não posso
condená-lo”. Estava preparada a acusação para contraditar o juiz de Roma. “Se
não o condenas, vamos acusar-te que não és amigo de César Imperador, pois esse homem fez
campanha contra o pagamento de impostos a Roma” Pilatos abdica das suas competências de julgador
e entrega-as aos acusadores – “Julgai-o, vós” – mas esses devolvem-nas de
imediato, alegando que não querem “as mãos manchadas de sangue”. Tremendamente apertão
entre Jerusalém e Roma, Pilatos tenta a última cartada – “Que o povo escolha
entre Jesus e Barrabás” – mas mal sabia ele que a máquina do Templo de
Jerusalém já havia mobilizado as suas hostes entre os marginais, os vagabundos,
os mercenários, os condenados que, na ocasião e para o efeito, foram premiados
com a saída das cadeias. Por isso, o grito obedeceu às ordens superiores:
“Solta Barrabás. Ao outro, mata-o na cruz”. O povo da noite do Pretório não foi
o mesmo Povo da manhã de Domingo de Ramos. -
Um
ponto de ordem: Da análise acurada do Processo, não foi Pilados o autor do
assassinato de Jesus, tal como não é imputada ao Juiz a absolvição/condenação
do Arguido. No caso vertente, é de uma evidência inquestionável a trincheira de
onde partu toda a acusação/condução deste maquiavélico Processo: o Templo de
Jerusalém, sede oficial do poder teocrático da religião judaica, herdeira de Abraão,
Moisés e David “Sacerdote, Profeta e Rei”. Quem matou Jesus?...
O
Processo continua.
03.Abr.23
Martins
Júnior
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