Chamam-lhe silly
season (passe o anglicismo), a estação da superfície, do voo rasante das
aves marinhas que debicam o oceano sem mergulhar na profundidade. Vou seguir-lhes
a vertigem alada e surfar (perdoem mais uma vez) ao sabor da onda estival
que agita Portugal, sobretudo durante estes trinta e seis dias dominados pela
pomposa capicua JMJ, Jornada Mundial
da Juventude.
Cumpro hoje o compromisso
do blogue de 29/06/23, ou seja, um olhar sobre um dos pormenores ornamentais do
gesto diplomático do Presidente do Parlamento Regional aos pés do Papa
Francisco: entregou-lhe em mão um jogo de paramentos litúrgicos, com a exclusiva
originalidade de serem confeccionados ao belo estilo do “Bordado
Madeira”. A primeira e última nota – e bem merecida – é a de um forte aplauso
por tão imaginativa e fidedigna dádiva em representação das bordadeiras locais,
enfim, das populações da Madeira e Porto Santo.
Entretanto, o melhor que
ficou no bico deste olhar atento foi um gosto a sal – o salitre saboroso das
nossas praias, que tem tanto de divertido como de inspirador
. Explico-me em poucas
palavras.
Já lá vão quase cinco
décadas, quando, na sequência das arremetidas do governo regional e da diocese
do Funchal contra a Ribeira Seca e que levaram à minha suspensão eclesiástica, fiquei
surpreendido com uma dádiva das bordadeiras locais, aceite de comum acordo,
precisamente uma “Casula” (a peça principal dos paramentos litúrgicos), sobre
cujo tecido foram estampados e depois graciosamente bordados os motivos
eucarísticos, espigas de trigo louro e cachos de uvas que sobressaíam lustrosos
do fundo branco de linho puro. A arte fina saída das mãos doloridas das
mulheres tornava-me mais dentro do espírito da verdadeira Eucaristia.
Por outro lado, foi o estratagema
concebido para contornar a acusação
formulada em tribunal pelas entidades acima referidas– o que várias vezes
fizeram, mas sem sucesso – alegando que se usasse os paramentos oficiais seria
condenado judicialmente, com base na Concordata entre Portugal e a Santa Sé, do
Vaticano. Desde então, abandonei as casulas
e as dalmáticas, confeccionadas em oficinas credenciadas pelas
autorizadas diocesanas e ricamente decoradas, ao pesado estilo dourado romano-barroco.
Abandonei-os definitivamente e passei a envergar os paramentos bordados,
diversificados em distintos motivos ornamentais, sempre estilo “Bordado Madeira”.
Mas o sabor agridoce do
episódio que motivou este bilhete postal ainda não o contei. Aqui vai, pois,
servido em três cenários, situados no tempo e no lugar:
O
primeiro durou várias décadas em que os paramentos bordados da igreja da Ribeira Seca foram
protagonistas nas más línguas oficiais e seus apaniguados devotos, políticos,
sacristas, que demonizavam e por todo o lado ‘cuspiam’ os nossos inofensivos
paramentos com os mais deprimentes baldões, repetindo que aquilo não tinha nada
de religioso, que as missas celebradas assim não tinham valor, porque eram vestes
profanas, anti-cristãs, comunistas até. No entanto continuámos
imperturbavelmente e vários foram os sacerdotes – párocos, teólogos, professores,
nacionais e alguns estrangeiros, nossos convidados - que celebraram a
Eucaristia revestidos com as belíssimas ‘casulas’ e viam nelas uma especial homenagem às mulheres bordadeiras da Ribeira
Seca.
O segundo cenário
aconteceu em 14 de Julho de 2019, quando o novo Bispo do Funchal, D. Nuno Brás
da Silva Martins, após ter revogado a arbitrária suspensão de 1977, realizou a histórica
visita à paróquia da Ribeira Seca – histórica, porque durante 50 anos os seus antecessores
tinham-na proscrito e abandonado. Nesse domingo intensamente festivo e de aplauso
geral, o Prelado evidenciou simpatia pelos paramentos bordados, a ponto de lhe
preparamos um conjunto igual aos nossos, entregue em mão no Paço Episcopal no “Dia
do Pão por Deus”, do mesmo ano. E tivemos a grata satisfação de ver, em
Quinta-Feira Santo, o nosso Bispo envergar a casula e a mitra bordadas na
Ribeira Seca.
O terceiro cenário
leva-nos às longínquas paragens do solo brasileiro, onde um sacerdote,
descendente de madeirenses, tendo celebrado no templo da Ribeira Seca, mostrou
desejo de levar consigo um dos exemplares da nossa colecção, o que gostosamente
satisfizemos. Lá longe, no sertão brasileiro, os paramentos bordados louvam o
Criador que tão bela dádiva deu à terra pelas mãos doloridas mas carinhosas das
bordadeiras da Madeira.
Perante tão expressivo ‘palmarés’
do histórico dos nossos paramentos, como não vibrar de entusiasmo solidário com
a oferta do Presidente do nosso Parlamento ao Papa Francisco?!... Só nos resta
desejar que o Sumo Pontífice siga o eloquente paradigma litúrgico do nosso
Bispo, isto é, que na solene celebração da JMJ tome aos seus ombros a cruz e a
beleza das nossas bordadeiras e, com elas, de toda a Madeira e Porto Santo.
Para nós, habitantes da
periferia urbana, fica-nos o encanto e o sortilégio de vermos o produto das
mãos rurais madeirenses, antes malsinado e proscrito, elevado agora ao supremo
altar do mundo! E mais uma vez, The Small is Beautiful.
05.Jul.23
Martins Júnior
....São joias verdadeiras, são lágrimas correndo mundo, são orações no Altar da Fé e da gratidão! parabéns às bordadeiras..... Aqui, em S. Paulo, as bordadeiras ajudaram a custear o Estádio da Portuguesa de Desportos e deram como homenagem o nome de Estádio Ilha da Madeira....
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