quarta-feira, 5 de julho de 2023

DO CHÃO RURAL À SACRALIDADE DO ALTAR!

                                                                               


Chamam-lhe silly season (passe o anglicismo), a estação da superfície, do voo rasante das aves marinhas que debicam o oceano sem mergulhar na profundidade. Vou seguir-lhes a vertigem alada e surfar (perdoem mais uma vez) ao sabor da onda estival que agita Portugal, sobretudo durante estes trinta e seis dias dominados pela

pomposa capicua JMJ, Jornada Mundial da Juventude.

Cumpro hoje o compromisso do blogue de 29/06/23, ou seja, um olhar sobre um dos pormenores ornamentais do gesto diplomático do Presidente do Parlamento Regional aos pés do Papa Francisco: entregou-lhe em mão um jogo de paramentos litúrgicos, com a exclusiva originalidade de serem   confeccionados ao belo estilo do “Bordado Madeira”. A primeira e última nota – e bem merecida – é a de um forte aplauso por tão imaginativa e fidedigna dádiva em representação das bordadeiras locais, enfim, das populações da Madeira e Porto Santo.

Entretanto, o melhor que ficou no bico deste olhar atento foi um gosto a sal – o salitre saboroso das nossas praias, que tem tanto de divertido como de inspirador

. Explico-me em poucas palavras.

Já lá vão quase cinco décadas, quando, na sequência das arremetidas do governo regional e da diocese do Funchal contra a Ribeira Seca e que levaram à  minha suspensão eclesiástica, fiquei surpreendido com uma dádiva das bordadeiras locais, aceite de comum acordo, precisamente uma “Casula” (a peça principal dos paramentos litúrgicos), sobre cujo tecido foram estampados e depois graciosamente bordados os motivos eucarísticos, espigas de trigo louro e cachos de uvas que sobressaíam lustrosos do fundo branco de linho puro. A arte fina saída das mãos doloridas das mulheres tornava-me mais dentro do espírito da verdadeira Eucaristia.

Por outro lado, foi o estratagema concebido para  contornar a acusação formulada em tribunal pelas entidades acima referidas– o que várias vezes fizeram, mas sem sucesso – alegando que se usasse os paramentos oficiais seria condenado judicialmente, com base na Concordata entre Portugal e a Santa Sé, do Vaticano. Desde então, abandonei as casulas  e as dalmáticas, confeccionadas em oficinas credenciadas pelas autorizadas diocesanas e ricamente decoradas, ao pesado estilo dourado romano-barroco. Abandonei-os definitivamente e passei a envergar os paramentos bordados, diversificados em distintos motivos ornamentais, sempre estilo “Bordado Madeira”.

Mas o sabor agridoce do episódio que motivou este bilhete postal ainda não o contei. Aqui vai, pois, servido em três cenários, situados no tempo e no lugar:  

    O primeiro durou várias décadas em que os  paramentos bordados da igreja da Ribeira Seca foram protagonistas nas más línguas oficiais e seus apaniguados devotos, políticos, sacristas, que demonizavam e por todo o lado ‘cuspiam’ os nossos inofensivos paramentos com os mais deprimentes baldões, repetindo que aquilo não tinha nada de religioso, que as missas celebradas assim não tinham valor, porque eram vestes profanas, anti-cristãs, comunistas até. No entanto continuámos imperturbavelmente e vários foram os sacerdotes – párocos, teólogos, professores, nacionais e alguns estrangeiros, nossos convidados - que celebraram a Eucaristia revestidos com as belíssimas ‘casulas’  e viam nelas uma especial  homenagem às mulheres bordadeiras da Ribeira Seca.

O segundo cenário aconteceu em 14 de Julho de 2019, quando o novo Bispo do Funchal, D. Nuno Brás da Silva Martins, após ter revogado a arbitrária suspensão de 1977, realizou a histórica visita à paróquia da Ribeira Seca – histórica, porque durante 50 anos os seus antecessores tinham-na proscrito e abandonado. Nesse domingo intensamente festivo e de aplauso geral, o Prelado evidenciou simpatia pelos paramentos bordados, a ponto de lhe preparamos um conjunto igual aos nossos, entregue em mão no Paço Episcopal no “Dia do Pão por Deus”, do mesmo ano. E tivemos a grata satisfação de ver, em Quinta-Feira Santo, o nosso Bispo envergar a casula e a mitra bordadas na Ribeira Seca.

O terceiro cenário leva-nos às longínquas paragens do solo brasileiro, onde um sacerdote, descendente de madeirenses, tendo celebrado no templo da Ribeira Seca, mostrou desejo de levar consigo um dos exemplares da nossa colecção, o que gostosamente satisfizemos. Lá longe, no sertão brasileiro, os paramentos bordados louvam o Criador que tão bela dádiva deu à terra pelas mãos doloridas mas carinhosas das bordadeiras da Madeira.

Perante tão expressivo ‘palmarés’ do histórico dos nossos paramentos, como não vibrar de entusiasmo solidário com a oferta do Presidente do nosso Parlamento ao Papa Francisco?!... Só nos resta desejar que o Sumo Pontífice siga o eloquente paradigma litúrgico do nosso Bispo, isto é, que na solene celebração da JMJ tome aos seus ombros a cruz e a beleza das nossas bordadeiras e, com elas, de toda a Madeira e Porto Santo.

Para nós, habitantes da periferia urbana, fica-nos o encanto e o sortilégio de vermos o produto das mãos rurais madeirenses, antes malsinado e proscrito, elevado agora ao supremo altar do mundo! E mais uma vez, The Small is Beautiful.

 

05.Jul.23

Martins Júnior

1 comentário:

  1. ....São joias verdadeiras, são lágrimas correndo mundo, são orações no Altar da Fé e da gratidão! parabéns às bordadeiras..... Aqui, em S. Paulo, as bordadeiras ajudaram a custear o Estádio da Portuguesa de Desportos e deram como homenagem o nome de Estádio Ilha da Madeira....

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