Uma certa radiografia das
emoções
Será pura diversão o meu
escrito de hoje, será uma despromoção do veículo mais precioso da condição
humana, o verbo comunicador, será porventura uma crítica aos valores ou desvalores
que comandam as nossas mais primárias
reacções. Cada qual optará pela interpretação com que melhor se identificar.
Tocou-me
ontem mais de perto a vulcânica explosão de festa, quer a dos fãs no Funchal quer a dos madeirenses presentes no campo de Marvila, quando souberam que o
velho “Uniãozinho da bola” tinha recuperado
o patamar soberano do futebol português, a ascensão à I Liga. É sempre digno de
ver-se, do sofá, e divertir-se com a torrente
gestual dos trejeitos faciais e os esgares de garganta, quais petardos de
júbilo desarvorado. E, em contraste, os mais sensíveis, alguns até às lágrimas,
meneando a cabeça de comoção e balbuciando como um bebé-chorão: “Não há
palavras!” E mais não disseram. O mesmo ritual pegava-se às gentes de Tondela,
ora em gritaria, ora no mesmo silêncio intraduzível: “Não há palavras”. E no
Benfica-Bi, muito mais.
Lembrei-me,
então, de tantos outros cenários em que o som esmorece e apenas reaparece no
“Não há palavras”, por exemplo, no desgosto de um acidente mortal, numa
decepção de amores frustrados, nos cemitérios mediterrânicos que afogam
crianças e adultos foragidos à guerra e à fome, no sucesso de uma licenciatura
ganha a pulso, enfim e em resumo, naquela mortandade que devorou vidas inocentes
em fevereiro de 2010 --- “não há palavras” --- e na “salvação” de uma imagem de
gesso que ficou intacta após a destruição da sua casa-capela, “não há
palavras”, repetiam os crédulos em uníssono com os hierarcas cá do burgo.
Que
abismo semântico é este em que se balançam e, paradoxalmente, se repelem três
indescritíveis fonemas?! Ocorre-me logo Eugénio de Andrade, naquele seu
intemporal poema “Gastámos as palavras,
meu amor”. Palavra-pau de toda a obra, palavra-senha do seu contrário, palavra-farrapo de qualquer
tapete puído. Nesta babilónia de interesses conflituantes em que somos obrigados
a viver, as palavras começam e acabam
por enfastiar-nos, ludibriar-nos até à exaustão, ao ponto de não lhes darmos
crédito no câmbio das relações humanas. Se para aquilo que nos é mais autêntico
e mais íntimo “não há palavras”, então a conclusão não poderá ser outra: no
normal quotidiano as palavras não servem para nada. Só para enganarmo-nos uns
aos outros. E com isso nos cansarmos. Venha “Ricardo Reis”, o estóico pensador reincarnado
em Fernando Pessoa, e explique o tédio desconcertante
a que nos leva esta fadiga da palavra batida, triturada, mil vezes ruminada,
seja ela escrita ou falada.
Por
outro lado, não deixa de ser verdade a máxima atribuída ao sumo e eloquente
Lacordaire: “Quando a dor humana é grande, grita. Mas quando é muito grande, a
dor cala-se”. E o que se diz do sofrimento pode também dizer-se da alegria ou
do sucesso.
Admitamos,
com a especulativa dose de optimismo,
que a linguagem é o dicionário de sinónimos do que sentimos e somos. Então aqui é que poderá entrar um outro
aforismo: Diz-me quais as palavras tuas e eu dir-te-ei quem és. Ou, noutro
registo: Mostra-me quando é que achas e quando é que perdes as palavras e eu
saber-te-ei de cor, os pensamentos, as emoções. Pela boca tanto respira e vive como por ela se agarra e morre o peixe,
já o sabemos.
Momento oportuno este
breve instantâneo captado no rectângulo de futebol e que nos faz interpelar: o
que é que te faz correr, o que te faz gritar ou ficar sem palavras?... O que te dói ou te galvaniza?... O que te
emociona?... Por quem vives ou por quem morres?... E é aqui que vais pôr a
“cruzinha” da tua opção: se nos
verdadeiros valores e emoções, se o vazio efémero daquilo que não merece nem
uma só pulsação do teu corpo!
Recorro ao pensador mais
pragmático e mais profundo do nosso tempo: “Mal vai a tecnologia da informação
quando dá mais importância às oscilações da bolsa que a um sem-abrigo que morre
na valeta do caminho”.(Francisco, Papa).
Pura
diversão, pessimismo de circunstância ou
espelho de alma?
Fica na tua. “Não há
palavras”-
25.Maio.2015
Martins Júnior
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