Escrevo esta declaração de princípios
precisamente no Dia do Trabalhador: só um Povo vigilante consegue assegurar a
defesa do seu país. Não há guarda nem polícia nem GNR que aguentem se não for cada
cidadão o guarda de si mesmo. A isto chamam Justiça Popular os sisudos
dominadores da sociedade, os que sadicamente sangram o mais fraco, protegidos
pelos biombos negros das leis que eles próprios fabricaram, tal como os padres
da Inquisição que se paramentavam de preto para rezar os ofícios pela vítima
que eles mesmos amarraram às chamas da fogueira. Não é da “justiça de Fafe” nem do vingar pelas próprias mãos que
venho falar. Nem daquela que o
presidente do governo cessante apregoou num comício em Câmara de Lobos contra
aqueles que se lhe opunham: “Quando esses indivíduos aparecerem não chamem a
polícia nem o presidente da câmara, resolvam o caso por vós mesmos”.
É
de outra justiça que trato hoje, Dia do Trabalhador, a qual tem a sua tradução
prática no conceito de “vigilância”. Estar vigilante é estar acordado para a
realidade, atento aos sinais dos tempos, interventor na hora oportuna. A arma
dos poderosos é a sonolência dos povos e a força deles é a anestesia dos
fracos.
Na
sequência da posição central que o Povo de Machico tomou aquando do 25 de
Abril/74, vou referir-me ao papel determinativo dos trabalhadores na defesa da
sua terra e dos valores da democracia nascente. Para entender cabalmente este
capítulo é indispensável ter em mente o anterior, ou seja, o plano destruidor
da organização terrorista “flama” (não merece maiúsculas) que amotinou, até à
morte, as nossas duas ilhas, sob a passividade, se não mesmo cumplicidade, da
autoridade absoluta do arquipélago, o governador civil e militar Carlos
Azeredo. Em Machico comentava-se às claras: “Tanta bomba a rebentar por essa
ilha fora e nem o governador nem o tribunal descobrem os criminosos?...Aqui não
vai ser assim… Se chegarem cá, vamos
saber quem são ”…
E
foi o que se passou.
Naquela
manhã de Agosto, subo eu para o meu
gabinete, quando o subchefe da PSP me apresenta seis rapazes que os trabalhadores vigilantes nocturnos da “Matur” apanharam a pintar as paredes daquele complexo
turístico com as conhecidas palavras de ordem “flamistas”, tendo-os denunciado
imediatamente à polícia. Nessa época, o presidente do município era o superior
hierárquico da PSP. Surpreendido com o facto, cumprimentei-os e, devido à
sobrecarregada agenda dessa manhã, disse-lhes que fossem almoçar ao referido
complexo turístico onde estavam hospedados. Entretanto, expus o caso, via
telefone, ao dito governador que peremptoriamente me ordenou “metê-los no
calabouço”, após respectiva identificação. Voltaram à tarde os jovens ao posto
policial, instalado no edifício municipal, foram identificados pelo subchefe,
mas não os prendi, primeiro por não haver necessidade e, também, porque um
deles tinha 16 anos. Os outros eram maiores. Por enquanto não revelo aqui os
seus nomes nem a sua proveniência, apenas refiro que dois deles, filhos de um
conhecido independentista açoriano pertencente à “FLA”, tinham chegado nessa
mesma noite à Madeira e já estavam em acção.
A
carrinha da PSP, enviada pelo governador, permanecia à porta da câmara
municipal, aguardando os rapazes para transportá-los ao Funchal. E foi nesse
preciso momento, 18 horas, quando os mandei tomar a carrinha, que tudo se
complicou. A viatura avariou-se.
Comunicado o incidente, o governador prometeu mandar um “unimog” do exército. Na altura, já Machico sabia do caso e os
trabalhadores da construção civil em serviço nas obras da Matur, após a hora de
trabalho, aglomeram-se na Praça do Município. Eram centenas e exigiam conhecer
e “saber a quem pedir contas se alguma bomba rebentasse em Machico”. Aliás, toda
a gente sabia que, após as inscrições
murais, o bombismo tinha campo aberto.
Apresentei
os rapazes pacificamente, os quais falaram sem receio à multidão e até me
recordo bem de um deles ter justificado a independência da ilha, dizendo
claramente: ”É para o dinheiro da Madeira ficar aqui para os madeirenses”, ao
que alguns dos trabalhadores presentes responderam “P’rao teu pai ficar com
tudo e a gente sem nada”.
Como
a viatura militar tardasse, resguardei os jovens de imprevisíveis excessos da
multidão e convidei-os a esperar no gabinete. Houve momentos que me causaram
susto e séria apreensão, sobretudo quando um grupo mais enervado quis forçar a
entrada da câmara. Sabendo que o piquete de polícias que blindava a porta era
impotente perante a multidão, vim eu pessoalmente cá fora e pedi serenidade e
controlo, para evitar problemas maiores, tendo-se então acalmado à minha
palavra. Finalmente, pelas 11h da noite chegaram várias viaturas militares
carregadas de tropas que desataram à coronhada e “bombadas de fumo” contra a
multidão, enquanto os rapazes tomavam os seus assentos, rumo ao Funchal.
Eis
em termos fidedignos o que os “flamistas” terroristas e o governador chamou de
“Tribunal Popular”. Nem um toque, nem um empurrão, nem uma agressão. Tratou-se
tão só de uma acção preventiva contra eventuais apetites bombistas sobre
Machico. A perturbação instalou-se apenas quando surgiu um dos parentes dos rapazes, insistindo para entrar
nos Paços do Concelho e eu, contra a vontade da multidão, acedi.
De
todo este relato, cinco item’s a reter:
1º
- Um louvor aos trabalhadores que,
durante o seu horário de trabalho,
portaram-se como verdadeiros vigilantes e defensores do Povo.
2º
- Gostaria de mostrar ao público imagens
dos factos, mas só poderá fazê-lo quem os gravou na sua máquina fotográfica: um
jovem recém-formado e grande impulsionador dos acontecimentos, que mais tarde
chegaria a Secretário Regional, engenheiro Santos Costa.
3º
- Até essa altura, Machico não soube o
que foi atentado bombista. Só daí a um mês estouraram com o carro de um
familiar meu. O que nos levou a concluir que o objectivo do governador Carlos
Azeredo era que a população não conhecesse os eventuais bombistas, configurando-se
como seu proteccionista. Espalhou-se em Machico a canção de um amigo meu que
dizia: “O Azeredo/O flamista/Foi o traidor/De toda a nossa conquista”.
4º
- Foi logo a seguir aos acontecimentos
narrados que o mesmo plenipotenciário governador
conseguiu o que queria: destituir-me da presidência da Câmara.
5º
- Guardo, mas por agora não revelo, o
abraço que, anos mais tarde, me deu um emigrante, nessa altura de férias, num
inesperado encontro no Funchal e desabafou:” Sr. padre, eu fui um daqueles
rapazes daquele dia em Machico. Agradeço ter-me tratado bem e aos meus companheiros
e nos ter mandado almoçar a casa, na Matur”.
Esta
é a versão autêntica dos acontecimentos, tão distorcida e vilipendiada que ela
foi por toda a comunicação social madeirense, que nunca me deu oportunidade de
esclarecer. Espero ter tempo para, um
dia, mais expressamente descrever os desenvolvimentos e as consequências dos
factos narrados.
Por
fim, cumpre-me reiterar o voto de congratulação aos trabalhadores que têm hoje
o seu Dia, evocando o seu papel de centralidade na defesa da sua terra e na construção
da história.
1.Maio.2015
Martins Júnior
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