Escrever sobre a areia é
o estilo corrente das redes sociais: vem a onda e leva a escrita por mais
primorosa que se apresente. No pequeno visor da nossa mesa ou do nosso “tablet”
preferimos a foto do dia, a notícia fresca, o comentário em cima da hora,
enfim, o transitório dos dias, esperando avidamente a onda da hora seguinte para embalar-nos nos braços do efémero, do
inédito, do fortuito. Mas não é isso o que mais me move, ao picar as teclas do
mensageiro computador.
Vem esta introdução para
justificar a sequência que me propus nos cinco dias que antecederam as
comemorações do 25 de Abril: provar que nenhuma metamorfose (chame-se revolução,
plebiscito, golpe de estado) conhecerá êxito se o Povo não estiver lá dentro,
na sua génese, o mesmo que dizer, na centralidade da acção. Tomando por paradigma
o sucedido em Machico, tentei abrir os canhenhos das memórias e provar sucintamente que, na
realidade, foi a população que ocupou a centralidade dos acontecimentos, sob o
ponto de vista económico e sócio-político. (CFR. 19,23,29/4), deixando para hoje uma outra vertente,
essa a mais determinativa, ou seja, a emancipação cultural.
Não se trata de puxar
galões e fictícias comendas se disser que Machico marcou presença assinalável
no panorama cultural madeirense. Remontando ao passado mais longínquo, a
tradição romântica dos saraus e torneios artísticos desde o tempo do “Tristão
das Damas”, reergueu-se com o talento do
poeta-filósofo Francisco Álvares de Nóbrega, (“Camões Pequeno”, Séc. XVIII)
produzindo incontestável caudal de criadores literários e musicais, escritores,
poetas, jornalistas até aos dias de hoje.
As datas da Descoberta, 2
de Julho, eram festejadas, ao lado da efeméride de Álvares de Nóbrega, peças de
teatro (“O Infante de Sagres”, de Jaime Cortesão) tudo numa afirmação
patriótica das terras de Tristão Vaz. Nóbrega chamava a Machico “A Pátria do
Autor”. Já antes do 25 de Abril,
enquanto as remotas escolas primárias funcionavam em velhos pardieiros, já nessa
altura, numa zona marcada pela mais isolacionista ruralidade, nas instalações
da igreja da Ribeira Seca, voluntários
dedicados ministravam aulas dos 1º, 2º e 3º ciclos, donde saíram futuros universitários para as Faculdades de Direito,
Medicina, Engenharia. Exposições várias e novos saraus movimentavam os lugares
históricos de Machico, como documenta a foto inicial. As populações, mesmo na
sua rudeza ancestral, estavam ansiosas por saber a evolução política do país,
ficando memorável a participação de mais de uma centena de camponeses que
vieram ao centro da vila participar numa sessão-comício levada a efeito pela
Oposição, em 1969, no alpendre fechado de um restaurante local. A prisão de
alguns machiquenses no forte de Elvas, por ocasião da “Revolução do leite”, em 1936 e já
antes, em 31, na “Revolução da farinha”
ou, Revolta da Madeira contra o
salazarismo, eram narrativas orais contadas a filhos e netos, caldeando
mentalidades para a sementeira de Abril.
Mais expressamente, na
vertente musical, ficaram marcadas até hoje as reivindicações populares contra
os governantes do concelho que deixavam à sua sorte as camadas rurais, sem estrada, sem água e sem
luz, através de canções e bailados tradicionais das festas religiosas, de que
damos esta pequena amostra: “Santíssimo Sacramento/ Batemos à vossa
porta/ Valei à nossa miséria/ Já que a Câmara não se importa”. Escusado
será dizer que isto valeu a ira do presidente de então que chegou ao cúmulo de
mandar dois elementos da PIDE fiscalizar o espectáculo no próprio local, o adro
da igreja.
Logo, logo nos alvores de
Abril, convidámos a actuar em Machico cantores de intervenção, Tino Flores,
Vitorino e Janita Salomé, Fausto e, mais adiante, Sérgio Godinho, Fanhais, Júlio Pereira, os “Trovante”. Para sempre ficará
escrito nos anais da cidade a actuação de Zeca Afonso, em 1976, (já
aqui recordada) aquando da candidatura de Otelo à República, negra noite em que
o brigadeiro Azeredo encheu a vila de “unimogs” carregados de tropa, mandou apagar a
iluminação pública, vendo-se o povo obrigado a romper às escuras por aqui e por
acolá, enquanto os militares desancavam
em cima de quem agarravam à sua frente.
Basta, julgo eu, esta
breve notícia que vem de longe, para compreender-se o porquê e o como Machico
assimilou a Revolução dos Cravos e fez, ele mesmo, frutificá-la na sua terra. “Natura
non facit saltus” E a história,
também, não se faz aos saltos, diz o
velho princípio. Ela é um filão que sai de uma nascente, conhece altos e baixos, geme ao sufoco de pesadas
montanhas, mas depois reaparece pujante em cânticos de luta e de vitória.
No próximo “dia ímpar”,
abordarei (para que os homens não esqueçam) a relação cultural da população com
um incontornável veículo de mentalidades, a Igreja Católica, na construção (ou
na destruição) da genuína alvorada de Abril em Machico. E não só. Na Madeira.
05.Maio.2015
Martins Júnior
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