Dizem
os nutricionistas e recomendam os dietistas que se deve preferencialmente consumir fruta da estação. E no extenso mercado
global dos lavradores estendem-se nesta altura aos nossos olhos vastos cabazes
de frutas, umas endémicas, outras exóticas e, e entre estas, muitas invasoras e
infestantes. Desde as laranjas
furta-cores da política aos mamões amadurecidos, quase podres, do futebol, há
muito por onde escolher.
Hoje
deito a mão ao cesto do “Espírito Santo”. Ele vem de longe, já foi pintado,
enfeitado, outras vezes proibido e ostracizado, sem contar com os remendos e
contrafacções que lhe têm caído em cima. Refiro-me aos rituais popularizados,
especialmente na Madeira, em “honra do Divino”, como afectuosamente e mais
supersticiosamente lhe chamam os devotos. É um assunto sério este que os usos e
costumes nos trazem embrulhados no manto das bandeiras da pombinha. Ater-me-ei
às origens históricas e duvido que tenha espaço para debruçar-me sobre os seus desenvolvimentos até aos nossos dias.
Não
quero escandalizar ninguém, mas os factos são factos e contra eles falecem todos
os argumentos e piedosas elucubrações. Por isso, a histórica devoção ao
Espírito Santo tem de tudo, menos do que é espiritual. As insígnias vermelhas,
a coroa real, o ceptro imperial, os “pagens” (assim ordenava a tradição do
cortejo processional no Porto Santo quando lá estive como pároco há 50 anos)
todo esse cerimonial possuía, em termos miniaturais, a magnificência e o poder
da monarquia. Procurei as raízes e encontrei
nos quatro grossos volumes de Fortunato de Almeida --- “HISTÓRIA DA
IGREJA EM POPRTUGAL (1930) --- o início
da devoção ao “Divino”: Foi El-Rei D. Dinis
que, a pedido da esposa Rainha Santa Isabel, mandou construir em Alenquer um
templo dedicado ao Espírito Santo. Tal como o “milagre das rosas”, a devoção
pegou e, a partir das cúpulas do reino, a Hierarquia regulamentou meticulosamente
a tramitação das faustosas cerimónias públicas. Eis o relato do insuspeito
historiador:
“No Domingo de Páscoa entrava na convento
aquele que fora nomeado para Imperador. De tarde saía da igreja do Espírito
Santo o Imperador acompanhado de muitas festas, trombetas e grande multidão de
povo com canas verdes nas mãos. E adiante iam dois pajens, um com a coroa e o
outro com o estoque e tornando ao convento era novamente coroado. Acompanhando
o Imperador seguiam duas donzelas honestas que dançavam no préstito e
eram damas do Imperador e por isso se lhes dava dote para casamento. Voltava o
Imperador para a igreja do Espírito Santo onde oferecia a coroa num altar e de
novo a recebia das mãos de um sacerdote. Depois assentava-se num trono com o
seu dossel e diante dele havia folias, bailes dos nobres e do povo. Todos os
domingos se faziam estas festas atá ao anterior ao do Espírito Santo que se
chamava dos fogaréus, porque como as festas se prolongavam pela noite
dentro acendiam-se luzes no arraial”. (pág.556).
Fortunato
de Almeida classifica de “extravagâncias” estas devoções, que se foram
desenvolvendo ao gosto popular e , com abusos tais, que chegaram a ser
interditas pela Igreja. Citando:
O Imperador passou
a ser um menino para representar o bispo inocente que vestiam com
as vestes e insígnias episcopais, governava o clero até ao dia seguinte,
visitava as paróquias como se fosse prelado da diocese, deitava bênção, etc..
Era uma folia, de que o povo ria, e que afinal foi proibida por diversos concílios”
(pág.557).
No
decurso dos séculos, a tradição obedeceu ao velho ditado “cada terra com seu
uso e cada roca com seu fuso”, de tal forma que as autoridades eclesiásticas
viram-se confrontadas com a fértil exuberância da imaginação popular, que misturava
a devoção ao “Divino” com práticas marginais, senão mesmo contraditórias,
reminiscência das antigas festas pagãs. Uma característica, no entanto, ficou
sempre indelével: a configuração do poder imperial adaptada a cada região, sob
o signo do Espírito Santo.
Na
Madeira, outro tanto aconteceu. Os colonizadores da ilha, capitães donatários e
sucessores, detentores do poder senhorial, foram os grandes pioneiros da
devoção. É o caso de João Gonsalves Zargo que erigiu em Câmara de Lobos a
primeira capela ao Divino Espírito Santo. Obedecendo aos mesmos cânones
senhoriais, o fidalgo João Esmeraldo mandou construir a então sumptuosa igreja
do Espírito Santo na Lombada da Ponta do Sol. Da minha parte, sou levado a crer
que a (afectivamente “minha” porque la estive
dois anos consecutivos) capela do Espírito Santo, no Porto Santo, terá sido
obra da velha tradição régia de Portugal colonizador.
E como bem calculei eu no início destas notas, fastidiosas ou
apreciáveis conforme os gostos, hoje não dá para concluir a mensagem. Ficará para a próxima semana.
29.Maio.2015
Martins Júnior
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