Pegou
moda o “Je suis Charlie”, mas por mim
dispenso-o e não me sai crânio e dos nervos, sobretudo de 30 para 31 de maio,
um outro refrão, bem mais alto e interminável: “Je suis d’Arc”. Porque ainda pairam no ar que respiramos as
labaredas de há 584 anos, nessa lúgubre noite de Rouen quando amarraram a uma
pilha de lenha aquela rapariga de 19 anos de idade, enquanto em redor padres da Inquisição rezavam ofícios por sua
alma. Ela era, ela é e sempre será viva e incandescente para a memória sem
termo: Joana d’Arc.
Dia
grande em França para comemorar a sua patrona, a reconquistadora da soberania
francesa contra as investidas açambarcadoras da Inglaterra na conhecida “Guerra dos Cem Anos”. Dia Grande para a
França. Dia Memorável para a Humanidade: uma jovem camponesa, vendo a sua
pátria e a sua família acossadas pelos ingleses, quando tudo parecia perdido,
apresenta-se ao príncipe Carlos VII e faz-lhe um apelo veemente, tal como
Moisés no antigo Egipto: Deus manda-me
libertar o meu Povo! Indeciso, depois descrente dela e ainda depois confiante
na forma e no fundo do apelo rapariga de Orléans, entrega-lhe espada, armadura e o comando do exército francês nessa ingente
campanha fatal. E ei-la que surge na vanguarda de milhares de homens contra as
hostes inglesas, comandante valorosa, montada a cavalo, trajando armadura de
guerreiro, mais que o Mestre de Avis e
mais que o nosso Condestável Álvares Pereira, escorraça os invasores britânicos
e faz coroar o dito Carlos VII, solenemente, na catedral de Reims, como o único
e verdadeiro Rei de França, em1429. Dois anos depois, é queimada viva na praça do Vieux-Marché da cidade de Rouen.
Como
foi possível consumar-se no corpo desta jovem de 19 anos a sina maldita a que
são condenados os libertadores da pátria, da ciência, da cidadania e da
dignidade humana?... E quem a condenou a tão atroz suplício?
A
história, particularmente com a investigação do douto mestre Jules
Michelet, no-lo explica, bem como os
22.000 documentos arquivados na Biblioteca de Orléans. E sobriamente aqui se
reproduz o trágico testemunho: era o
tempo da Inquisição e o bispo presidente do “Santo Tribunal” pertencia à
nobreza dos de Borgonha aliados da coroa britânica. Foram estes que, por meio
de uma cilada ignóbil, entregaram Jeanne d’Arc ao referido bispo Cauchon, o qual, sob a falsa acusação
de bruxa e visionária, lavra, com o prazer sádico da religiosidade, a pena
máxima: a fogueira! Não se sabe se fazia lua nessa noite, mas pode bem
imaginar-se o mesmo tétrico espectáculo do enforcamento do general Gomes Freire
de Andrade em S. Julião da Barra, magistralmente plasmado na peça “Felizmente
há luar”, do saudoso Sttau Monteiro. Mais eloquentes ainda Artur Honegger e Paul Claudel no imortal oratório “Jeanne d’Arc au bûcher” (Joana d’Arc na
fogueira”)!
E
depois, como reagiu a Hierarquia da Igreja, auto-cognominada de Cristo? Vinte
anos mais tarde, o papa Calisto III mandou rever o processo, detectou a
injustiça do mesmo e ordenou a reparação do crime perpetrado pelo facínora
bispo Cauchon. Mas… só 500 anos depois,
Pio XII proclamou-a santa e padroeira de França, em 1920. Cinco séculos para reparar tamanha crueldade!
Para
quem ainda tenha dúvidas sobre o passado negro da Igreja Vaticana, em nada
dissonante do actual Estado Islâmico
(matavam-se inocentes sob a farsa da religião) as 24 horas de 30 para 31 de
maio de 1431 e os 500 anos para repor a justiça e a verdade dos factos, fazem-nos
tremer! Razão tem o Papa Francisco para limpar a podridão hereditária da Cúria
Romana e muitos dos seus serventuários bispos e cardeais, disseminados pelo
planeta, da raça de Cauchon (por
aproximação fonética “cochon”, ou
“porco”, em tradução portuguesa).
É
dia de beijar as cinzas da jovem de Orléans
que os ventos da História trouxeram até nós, ao arquipélago que
habitamos. A Joana d’Arc poderá com todo clamor atribuir-se-lhe a épica
homenagem de uma sua ancestral figura bíblica,
Judit, que arriscou a vida para libertar a sua gente sitiada pelo
general Holofernes: “Tu és a glória de Jerusalém. Tu és a honra do nosso Povo”!
Falei
em homenagem a Joana d’Arc. Mas a maior homenagem é a convicção de um Povo,
persistentemente vigilante e
interventivo, para não permitir que se
queimem em chama brava ou em lume brando aqueles e aquelas que sonham e fazem um mundo melhor onde todos possam respirar sem medo das
fogueiras dos poderosos!
Termino
com a transcrição do pensamento de Bertolt Brecht citado, tão oportunamente,
pelo recém-criado semanário francês, Le
1: “Felizews os povos que não
precisam de ter heróis”. Por mais paradoxal que pareça esta análise do
grande dramaturgo, é nela que está o pulsar justo e harmónico do organismo
social: cada um de nós terá de ser esse herói anónimo na correnteza dos dias
felizes.
31.Maio/1
de junho 2015
Martins
Júnior
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N.B. - A CEFISA-RS ( Comissão da Ribeira Seca) editou um CD intitulado “A
Igreja é do Povo/O Povo é de Deus”, de onde consta a síntese do que foi dito
acima. Colocá-la-emos amanhã no facebook desta comunidade.
Um belo texto para os meus alunos de 12ºano, a propósito da obra estudada Felizmente há Luar de Sttau Monteiro.
ResponderEliminarCumprimentos,
Paula Góis