Ainda
não havia o “Dia Ímpar” e este, sendo par, já lá estava de pé, à minha espera. Cada um de nós tem sempre um Dia Ímpar na curva da sua estrada.
Era
um domingo estival nascente, 9 da manhã,
22 de Junho, já lá vão 46 anos. O rapaz, trintão caloiro, nos olhos o viço da
primavera em trânsito, na testa o sol do verão moçambicano que pouco antes
deixara nas plainas africanas da guerra colonial. Desceu a estreita vereda que
o levou, a ele e aos aldeões que o esperavam, ao templo-garagem incrustado no fundo
do barranco alto. Ao iniciar a primeira celebração, depressa conheceu a tez do sofrimento escrito no rosto
daquela gente. Mais tarde seguiu as pisadas de “Eurico, O Presbítero”,
subiu ao miradouro serrano e de lá olhou
o vale em redor: estábulos de colmo onde
habitavam os seus novos “fregueses”. Nem um caminho nem uma estrada. Água, só a
das levadas. À noite, nem vivalma de uma
lâmpada que exorcizasse a escuridão. De regresso a casa, caíu em si e
caíram-se-lhe os braços sobre a mesa de pinho: “Afinal, vim de uma África para
outra África”…
Podia
começar assim uma espécie de romance popular em prosa. E, tal como todos os
romances, seria um nunca mais acabar.
Passemos aos factos.
A
Ribeira Seca era, ao tempo, um feudo de senhorios. Desde o fundo dos ribeiros
até ao “poínho” da serra. Os camponeses, isolados no alcantilado dos montes,
lavravam terras que não eram suas. Dividiam a meias com o olheiro-feitor do
longínquo senhorio os frutos de uma canseira, de sol-a-sol. Deles, dos
camponeses, só os filhos, a prole, a riqueza dos proletários. Sob uma aparente
reverência, era o medo que lhes apertava o peito e os fazia curvar, de barrete na
mão, à passagem dos senhores da vila.
Mas
a revolta estava lá, transfundida no
sangue de pais e avós, tal como as grandes tempestades sub-oceânicas que depois
rebentam à superfície. E foi o que se passou. Antes e, sobretudo, após o “25 de
Abril” de 1974. Numa palavra, o Povo libertou-se.
E
aí começou a saga das suas vitórias, do tamanho e à medida das pancadas com que
as pagou e continua a pagar: os atentados armados das forças governamentais
contra a sua igreja, as retaliações contra o seu Povo, o ostracismo da Igreja
Diocesana e o tratamento discriminatório de uma comunicação social, subreptícia
ou claramente alinhada com os poderes reinantes. Mas continua de pé! “De pé
firme e confiante, o caminho é p'ra diante”, assim continua a cantar-se na
Ribeira Seca.
*** Os velhos senhorios do regime fascista,
massacradores implacáveis de gerações e gerações de “servos da
gleba”, caíram com a Revolução
dos Cravos
*** O ditador-mór da Madeira, que
conspurcou tantas e repetidas vezes
o nome da Ribeira Seca e as suas gentes, também
foi derrubado do trono ultra-autonómico.
***
O bispo F. Santana, que proibiu o fornecimento das hóstias da Eucaristia aos cristãos da Ribeira Seca, já
está no “mundo da Verdade”, lá para onde
todos caminhamos.
*** O bispo T. Faria
que ordenou, em conluio com o governo, o assalto
(hoje, diríamos, talibã) de 70 polícias à igreja da Ribeira Seca, também
já foi desarmado do báculo e da mitra pontificais, ficou-lhe para sempre a satânica blasfémia de ter comparado a Jesus Cristo na cruz um pederasta, padre, seu secretário particular, condenado a 17 anos de cadeia e, depois, evadido da prisão.
*** O bispo A. Carrilho, que proibiu a entrada da
Imagem Peregrina no adro e na igreja da Ribeira Seca, aí está para confirmar a
subserviência da diocese ao poder político, aguardando o fim de mandato, já próximo, como inquilino do Paço Episcopal. Levará
consigo no baú as muitas cartas que
recebeu da comunidade da Ribeira Seca,
sem nunca ter respondido a nenhuma delas.
Mas
a Ribeira Seca continua a sua marcha : viva, livre, tranquila e feliz. Aquele
templo e aquele recanto na periferia da cidade ali estão para atestar que a
Instituição hierárquico-monárquica da Igreja não está com Cristo E que quanto
mais longe estivermos da Instituição mais perto estaremos d’Ele.
Ribeira
Seca existe para demonstrar que a “A IGREJA É DO POVO E O POVO É DE DEUS”, como
canta no CD, cuja mensagem a comunicação social capciosamente escondeu, aquando dos 500 anos da diocese.
Ribeira
Seca permanece para demonstrar que os bispos de cá não têm fé no sacramento do
Crisma, pois há 40 anos recusam-se a ir dá-lo a uma igreja do Povo cristão. Ali
está para provar que na Madeira a Igreja deixou de ser sacramento da salvação:
as pessoas já interiorizaram que não precisam do bispo para se salvar. Quem nos
salva é Deus e a nossa consciência, eis o código da sua fé.
Ribeira
Seca permanece como aquela exemplar personagem do Journal d’un curé de campagne (“Diário de um pároco de aldeia”) de
George Bernanos: “Nela, a bondosa senhora, reflectia-se, como que em
contra-luz, toda a maldade do mundo à sua volta”.
Ribeira
Seca também está ali para que o mundo
saiba a fealdade e a tacanhez “islâmica” de uma Igreja egoísta, rancorosa,
incorrigível na sua hipócrita ilusão de
poder, quando nomeia sucessivos párocos para aquela igreja e onde nunca puseram
o pé. Ribeira Seca existe para que se veja a arrogância de quem, servindo-se do
mito e do obscurantismo religioso, ainda chama seu um prédio para o qual em
nada contribuiu e uma igreja que abandonou há mais de 40 anos, comportamento
este previsto e punido pela lei humana do usucapião. O cônjuge que abandona a
casa perder-lhe o direito.
A
Ribeira Seca existe para que um dia lhe seja feita Justiça. Para que a
irresponsabilidade de uma Igreja diocesana, cobardemente engenlhada sob o
guarda-chuva do poder, acorde para a vida e veja os prejuízos irreparáveis que
deixou pelo caminho. Foram precisos 500 anos para que a Igreja fizesse justiça
a Joana d’Arc e revogasse a sentença do bispo inquisitorial Cauchon (que a
condenou à fogueira) e a reconhecesse como santa libertadora dos franceses e
sua patrona oficial. Esperemos que não seja tão longa a ditadura eclesiástica.
Mas
a Ribeira Seca não tem apenas 46 anos. É tricentenária. Desde 1692, data da
construção da velha ermida por Francisco Dias Franco, capitão-secretário do
Município de Machico, desde então já talhava nos socalcos e veredas o monumento da sua
história. E antes, muito antes, Já nos primórdios da colonização, o
italiano Diogo da Nóia, negociante do ramo da tinturaria, enriquecia o tesouro do Rei com um terço
do pastel extraído dos muitos
tintureiros ali existente, produto
precioso que exportava para o estrangeiro.
Mas em toda a história há um Antes e Depois. Durante séculos, a Ribeira Seca viveu
sob o Velho Testamento da escravidão. Há quase meio século, despertou para o
Novo Testamento da Liberdade.
Embora muito mais haja por abrir na
cortina do Tempo, fico-me hoje por este relato breve de um Povo que abraçou os
cravos da Vida e deles fez a bandeira que flutua no verde da paisagem e no
rubro dos corações.
Deixo para amanhã, os contornos
pessoais destes 22 de Junho de 1969, respondendo directamente à pergunta em
epígrafe: “46 anos --- Porquê?”
21-22.Jun.2015
Martins Júnior
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