Na estação das cerejas surgem, aos punhados, factos e pessoas e coisas que povoam e quase rebentam as rotativas dos jornais e os rectângulos do audio-visual. Deixo no congelador todos os outros temas e ocupo hoje este espaço (porque sempre me tem ocupado e preocupado) sobre o mais rasteiro e mais poderoso rectângulo que tem dominado a opinião pública: o futebol. Longe estava do meu pensamento gastar um pingo de tinta com as botas do relvado. Mas os casos do cochicho quotidiano têm atingido proporções tais que não podemos ver deixar passar um monstro à nossa frente como se fora um “mosquito nas Desertas”.
Não
me restam dúvidas de que o desporto-rei criou o desporto-escravo. Tornou-se a
mitológica Hidra de sete cabeças cujos tentáculos se deixam ver na sua
virulenta fealdade quando atinge as cúpulas supremas da sua arquitectura. Ainda
o mundo está transido de espanto e nojo perante esse covil de gente emproada
por fora e podre por dentro, os corruptos das altas esferas da FIFA, como
atempadamente denunciou o nosso Luís Figo.
“O Ronaldo foi vendido
por tais milhões, o Sulemani vai ser comprado por outros mais ou menos milhões,
o Nani vai para o mercado por tantos” e,
por fim, (ai jesus!) o Jesus troca de
cor por mais um milhão e meio de luvas ou sei lá o que seja, tal como os Mourinhos
e os Vilas Boas mudam de pátria. O amor à camisola, o patriotismo clubista, os
murros da honra na cara do adversário! Tudo lérias, tudo fumaça. “Cacau” é o
que marca ou, parafraseando o humor de Francisco Louça sobre o antigo rali afro-asiático: “País, dá cá”. A amigos
meus, quando os oiço discutir à brava pelo seu contra o outro clube, também
entro ao barulho e limito-me a dizer:”Vocês estão aí a esgaçar-se, sem nada
lucrar. Os que estão em campo e a ganhar milhões são os que menos amor têm à
camisola. Mais uns trocos e mudam de camisola mais depressa do que vocês mudam
de camisa”. E lá vem o sacratíssimo caso do benfiquíssimo Jesus! Mesmo que a moeda de câmbio sejam biliões,
não deixa de ferir os ouvidos de quem
tenha um mínimo de sensibilidade: “O homem vai ser vendido, o sujeito vai ser
comprado”, como se ouvia antigamente no mercado negro dos escravos.
Terminologia degradante.
E as fortunas em
numerários e em tempos com que nos massacram os media, sobretudo as TV’s, com
esses nauseabundos debates, mesas redondas, prolongamentos, dias seguintes,
todos repetidamente sobre o pobre Jesus?! Mas o que me repugna sobremaneira é
ver políticos, deputados, gente de responsabilidade na “respublica” sujeitar-se
a esse vexame, a essa baixeza de discutir as arbitrariedades do apito, as
rasteiradas, as caneladas em campo dos, para mim, novos gladiadores do circo
moderno! Mais útil seria assentar os árbitros, os centrais, os pontas-de-lança
para analisarem as injustiças, as votações parlamentares, os cortes e as
agressões que os políticos fazem ao povo português…
Finalmente
--- finalmente, porque o pouco capital que perdi com isto já foi demais --- o
“bezerro de ouro” cresce e empina-se como touro frente ao poder político. Basta citar o que disse o brasileiro João
Havelang, antecessor de Jepp Blater na FIFA, ao jornalista David Yallop (Wuo
They Stole The Game,1999): “Os Estados têm o seu poder e eu tenho o meu,
mas o poder do futebol é o maior”. Para quê mais testemunhas?
Aproveito para relevar
publicamente a atitude do anterior presidente da CM do Porto, Rui Rio (e estou
longe das suas opções políticas) face à basófia e às megaloruaças do chefe dos “dragões”.
Se é ponto de honra
separar o poder governativo do poder dos negócios, não o será menos cortar com
as corruptas alianças entre o poder político e o poder do futebol. Entre nós é
o que se viu e o que se vê: os quadros superiores dos clubes da ilha são tomados
por serventuários do regime: eles são ou foram deputados e/ou governantes (um
deles afiançou que será presidente do governo em 2020…), todos muito bem
servidos neste que pode considerar-se
“reino das Arábias” por ter três clubes
no escalão máximo do futebol português.
Pelo vírus estrutural dos
futebóis profissionais, pelo esbanjamento de capitais públicos e perante o
arrepiante espectáculo da entrada e da saída das claques frenéticas nos recintos
desportivos, escoltadas pela polícia de choque, mais parecendo as antigas hordas
de selvagens arianos contra os bárbaros do sul europeu, permitam-me reproduzir
aqui o desabafo que faço várias vezes aos meus amigos: Ligar o televisor para
ver cenas destas sinto que é uma traição a mim mesmo, um erro, uma cedência, um
pecado!
Razão
tinha Sylvie Kauffmann para, na edição de ontem de Le Monde, classificar este gigantesco
labirinto anti-desportivo como um “psicodrama geopolítico”.
Maior que todo este
libelo acusatório, deixo a minha mais entusiástica homenagem a todos quantos
educam a infância e a juventude, não para a arena mercantilista vigente, mas
para a verdadeira cultura atlética, como
era apanágio da civilização greco-romana, universal: “Anima sana in corpore sano” --- formar uma alma sã num corpo são.
9.Jun.2015
Martins Júnior
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