Considerem, se assim acharem, um passatempo esta minha
digressão pedonal que começa nos
miradouros do alto da antiga Matur, Água de Pena, debruçados como varandas de
sonho sobre o majestoso vale de Machico. Mas é da leveza do olhar que brota a
profundeza do pensamento, como da paisagem singela emergem as mais ímpares sensações.
Aproveitei o fim-de-tarde
de ontem, após a comemoração do 479º
aniversário da freguesia de Água de Pena , para fazer a caminhada diária.
Alcancei os miradouros e bem me apetecia ali ficar perdido no vasto horizonte que abarcava a
osmose perfeita entre o azulado e o lilás que definiam a silhueta das Ilhas
Desertas e até do Porto Santo
Ali, onde o homem se sente
o vértice da criação, o protótipo real do universo! Ali, onde os nossos braços se abrem e parecem
tocar as duas possantes muralhas do vale, ombro a ombro com os picos altaneiros.
Lá ao fundo, o insignificante formigueiro dos telhados, dos carros-caixa de fósforos e dos anões figurantes num rodopio de
peões errantes.
Mas era preciso
prosseguir viagem e fui descendo os carreiros ziguezaguantes do velho “caminho do Rei” que há sessenta e
setenta anos trepávamos em fuga para
jogar à bola no “Barreiro da Queimada”, o local onde mais tarde viria a nascer a
grande Complexo Turístico da Matur Grão-Pará.
Para descer, levei o triplo do tempo que nós, miúdos da
escola, levávamos a subir, nessa época.
Mas era
outro o olhar. Em cada passo, em cada curva , a ordem era “parar” e
ver que as coisas-perto, afinal, tornavam-se longe e as coisas-longe
faziam-se perto. Após meia dúzia de
voltinhas, estaquei e vi que os altos montes já não os abraçava, como no
varandim do miradouro, e o breu da via-rápida , lá em baixo, era mais que um
risco a tinta-da-china, Vi que o mar já não era distante, tinha subido de nível
e o ar já prenunciava o afago da maresia do “calhau”. Aí entrou em mim o espírito sadino de
Sebastião da Gama quando escreveu: “O poeta em tudo se demora”.
Chegado ao sopé do
promontório da Queimada, dei a última passada no “caminho do Rei” e já estava
eu possuído pelo vaivém das viaturas rolantes, cuidado com as passadeiras alvi-negras,
as casas franqueavam largamente as portas aos residentes, as saudações dos
transeuntes tomavam conta das emoções, os restaurantes semi-iluminados traziam
o tilintar da hora de jantar. E, no meio desta mini-arena do comum quotidiano,
como lembrar-me das montanhas? Onde estava o sortilégio da paisagem? Para onde fugira a ampla e reconfortante
respiração de quem “em tudo se demora”?... Afinal, a vida era esta, não a
outra. Afinal, toda a poesia se tinha alterado,
senão mesmo desmoronado.
Tanto tempo, página e
meia, para chegar à mais conclusiva evidência: o mundo, a vida, aquilo a que
chamamos realidade, depende tudo do local onde nos posicionamos para podermos
observá-lo. Consoante o chão onde colocamos o tripé da nossa objectiva, daí
surge a nossa visão do mundo, das pessoas, dos acontecimentos. Daí se estrutura
a nossa filosofia de vida, a visão sociológica captada pelo particularismo da
situação que escolhemos ou fomos forçados a ocupar. E daí, também, as contradições, os interesses conflituantes.
Isto, que não passa de
uma verdade à Lapalisse, bateu-me em
cheio quando abri o El Mundo e
deparo-me com uma bonita jovem jornalista do mesmo periódico, cabeça envolta na característica mantilha,
logo em 1º página: “Por que razão me questionam por ter abraçado esta fé? O Islão não é o véu nem o Estado Islâmico nem
nenhum terrorismo”. Onde assentou Amanda Figueras a sua objectiva serena e convictamente contraditar a
amostragem que todos dias nos aparece em casa nos écrans tintos de sangue?
Alguém viu, uma noite destas, o arrepiante documentário sobre a indústria
de curtumes no Bangladesh? O realizador
prevenia, lodo à entrada: “É para nós, europeus, vermos quanto sofrem os
nativos para termos mais barato o calçado, as malas, os casacos”! Rios contaminados, homens, mulheres e crianças
enfiando pelos nossos olhos dentro o raquitismo e a imundície de vidas tão
efémeras. Gente como nós. De um lado, o
preço barato, o lucro do empresário. Do
outro, a degradação humana. Onde colocaremos
as pupilas do nosso olhar?
Entremos num arsenal de armamento de guerra. De um lado, a produção de
“riqueza”, milhares de postos de trabalho, técnicos, criativos. Do outro, a destruição, o
genocídio. Quem decide? Em que ponto
enviesado da encosta estará o nosso
observatório?
Aquela casa, comprimida
num apartamento da cidade ou perdida na aldeia velha, alberga um casal,
recebido segundo o sagrado rito da Santa
Madre Igreja, ajuramentado com o signo da fidelidade e da unidade “até que a
morte os separe”.. Mas naquelas
quatro paredes é a violência que impera e destrói mulher, marido, filhos,
móveis, etc.. Que fazer? Que aconselhar? Onde colocar o microscópio? Na
fidelidade mutuamente bombardeada, na unidade arrasada ou nos filhos, vítimas
inocentes, afim de possibilitar a separação entre os cônjuges? O Papa Francisco pronunciou-se, há bem pouco
tempo, pela segunda alternativa.
Seria um nunca mais
acabar. O grande J:Cristo, que não sendo sociólogo “nem tinha biblioteca”, como
nos informa o “Cântico Negro” de José Régio, prenunciou aos seus futuros
mártires: “Há-de chegar um dia em que aqueles que vos matarem julgarão estar
prestando um serviço a Deus”.
Com ou sem respostas às
perguntas formuladas, é ponto assente que a sabedoria do julgador, como do
eminente Salomão, consistirá em investigar qual o posto de observação
garantidor da melhor equidade do juízo em causa. Peço aos pacientes topógrafos
do nosso território ensinem onde colocar
o teodolito do meu olhar interior para
alcançar a tal visão holística do mundo, o mesmo que dizer da marcação menos
incerta dos vários caminhos a percorrer nas encostas da vida.
Em que dão as voltinhas
em ziguezague do velho “caminho do Rei” do “Barreiro da Queimada”
25.Jun.2015
Martins Júnior
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