No imenso anfiteatro
multicolor em que se abre hoje a nossa ilha
--- vistosas procissões, tipo
paradas de realeza eclesiástica, fogos de artifício parisiense rasgando os céus
do Funchal, ecos retumbantes de um passado quinhentista em Machico --- destaco,
enterneço-me e faz-me vibrar as cordas da emoção e do pensamento vigilante um
episódio tão singelo quanto avassalador que, à semelhança de outras locais,
tive a felicidade de viver por dentro: a Primeira Comunhão na Ribeira Seca.
É verdade que, por toda a
parte, a festa de certos sacramentos (baptizados, crismas, casamentos) foram-se
deixando resvalar para a ribalta do espectáculo de variedades sociais. A Primeira Comunhão também não
escapa a esta deriva tentadora.
Mas, descontada esta
tendência já estandardizada, o dia de hoje é um livro aberto onde podem ler-se
as múltiplas dimensões da sensibilidade doméstica, o carinho com que todos lá
em casa se aprestam para brindar à pureza original daquele “pequeno-grande ser”
que hoje é protagonista. É ver a azáfama no atavio do menino e da menina, um
quase stress que mobiliza a casa inteira, desde o ramo de flores ao diploma
decorado pelo próprio neo-comungante, a preparação dos cânticos à sua conta, a
tuna dos pequeninos, enfim, uma agitação
buliçosa mas tão aliciante. Depois, a envolvente familiar, com pais, avós,
tios, primos, o cordão de gerações que se entrelaçam no templo cheio de luz, no
palco, no salão de convívio em que todos partilham do pão e dos bolos que
trouxeram de casa.
Para mim (aceitem esta
abertura de alma) ganha um sabor e um pendor particularmente tocantes o facto
de estar diante de pais e mães que há cerca de vinte/trinta anos eram exactamente crianças que comigo, neste
mesmo templo, fizeram a sua Primeira
Comunhão. Quem diria que tal viesse a acontecer. É esta, pois, a grande
(re)descoberta, ali “ao vivo”, de que a criança de hoje será infalivelmente o
mundo de amanhã. Bem dizia Louis Pasteur; “Diante
de uma criança sinto-me cheio de ternura por aquilo que ela é, mas cheio de
respeito por aquilo que poderá vir a ser mais tarde”!
Outro batimento interno
que preocupa quem prepara crianças para este dia: Que ideias vamos transmitir à
criança? Que ensinar? Sabendo que a alma
da criança é comparável à tabuinha de cera mole que grava indelevelmente os
caracteres que nela se inscrevem, os monitores/catequistas deverão ponderar
seriamente que conteúdos vão imprimir nessa folha intacta, expectante. Quantas
palavras ocas, fórmulas estereotipadas, inalcançáveis para a mentalidade
infantil, quantos temores vãos, como esse imperdoável atrevimento de forçar a
criança a confessar-se. Permitam-me (mesmo com risco de ficar desacompanhado
nesta minha convicção) compartilho
convosco a oração do perdão que as crianças formularam diante de toda a
assembleia presente: “Meu Deus, peço
perdão a quem ofendi em casa, na escola ou na rua. Ajudai-me a não tornar a
ofender. De hoje em diante, quero ser melhor”.
Nesta matéria da
pedagogia e da didáctica, tenho sempre comigo aquele aviso que um dia li em
Antero de Quental, “santo Antero”. como lhe chamava Eça de Queirós: “Não há
nada mais terrível que o olhar de uma criança”. Na singeleza do seu olhar assoma, por vezes, a profundeza de perguntas tais que nos
desarmam as prateleiras cheias de pó onde comodamente arrumámos as nossas ideias e preconceitos. Pagam-se
caro o embuste e as falácias com que empapelamos as nossas respostas. É este um
tema muito sério para quem ministra a educação religiosa das crianças. Por
isso, aqui me despeço neste dia de intensa vivência comunitária.
E ofereço-vos as duas quadras, em
forma de oração e compromisso, que as crianças da Ribeira Seca hoje proclamaram
em alta voz:
Na Primeira Comunhão
Nós
desejamos, Senhor,
Que
no mundo haja mais pão
Mais
respeito e mais amor
Por
isso agora prometo
Para
quando for maior
Lutar
pela Eucaristia
Fazer
o Mundo melhor
7.Jun.2015
Martins Júnior
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