“Todos
os anos, pela primavera” --- lá estou outra vez pegado com Luís Sttau Monteiro
--- Machico regressa ao berço de antanho, envolto no pergaminhos régios do
foral manuelino, alcandorando as luminárias do poder que passa, ridente e solene,
sob o pálio segurado por menestréis e cortesãos. E lá vêm as condessas e as
donzelas da corte, as respectivas aias de saias em redondel, enquanto as
charamelas, os alaúdes e os tambores enchem as ruas e os corações. É bonito de
se ver a capitania virgem do Império, a nobreza de outras eras, os torneios e
os saraus nos salões do “Tristão das Damas”. Fiel à história, não podia o
cortejo esconder os magros artesãos, o coro dos escravos, os homens livres e os
homens bons. Todos os anos, pela primavera, Machico volta a ser “uma nação”,
como de há décadas dizemos nós em terras de Tristão Vaz.
Deste
espectáculo que já vai na sua 10ª edição, pode afirmar-se aquele refrão que “é sempre antigo e sempre
novo”. E por sê-lo, de sabor tão denso e tão inspirador, recolho-me, mesmo no
meio da imensa multidão, recolho-me sim e sublinho algumas conclusões que ficam
para além do rasto efémero dos três dias de festejos.
Em
primeiro lugar, o valor estrutural desta iniciativa não fica a dever nada às
cúpulas da ilha ou das ilhotas pardas ou bastardas. Nasceu da raiz mais pura e
livre: a sua população, designadamente, a comunidade escolar. Carregada de um
nobre sopro de portugalidade, a partir desde logo da sua criadora, a distinta
Professora Raquel Esteves que no-la
trouxe do território continental e
enriquecida com o profissionalismo do VIV’ARTE, a iniciativa ganhou seiva e
fruto na força telúrica da juventude de Machico, com a eficiente colaboração da autarquia. E com tal pujança que a todos arrastou no
cortejo e na praça de mercar os manjares cozidos e temperados pela criatividade
dos nossos ancestrais. Embora a baixa de Machico fervilhe, a mais não poder, de
gente de fora nestes três folgados dias, a sua grande e
indissociável matriz está na comunidade local, como protagonista integral do “Mercado
Quinhentista”, com professores e alunos logo à cabeça. Num teatrinho de aldeia
em que os “Donos Disto Tudo” transformaram e açambarcaram a ilha e a sua
respiração, é meu prazer relevar o carácter autóctone da iniciativa e é meu
dever pedir a quem a dirige a coragem e o bom senso de, sem prejuízo dos mais
amplos apoios, nunca deixarem que os
habituais manipuladores do poder ou do dinheiro tomem o cadastro de tão rico
caudal de cultura e património.
Outro
índice que me fica deste imenso Livro de
História, ao vivo, é a trajectória que a Primeira Capitania da Madeira tomou ou
foi obrigada a rumar neste cinco quase seis séculos de vivências legadas de pai
para filho. O rochoso dinossauro que descansa a cabeça no cais do
Desembarcadouro e os altos promontórios da Ribeira Seca e dos Maroços
interpelam-me e interpelam-nos a todos, como que a perguntar: “Que fizestes do
brilho deste que foi o Pórtico das Descobertas?... Onde paira a estirpe dos que
desbravaram as terras e firmaram a nobreza deste Povo?... Que é feito deste mar,
onde o sol nasce primeiro?...
Suspendo
esta auto-inquirição, porque dói-me ver, de há alguns anos a esta
parte, empalidecer o “esplendor” desta “nação” que é Machico. Porque daí surge
um outro interrogatório: “E tu, sim, que
fizeste tu para reerguer esse esplendor? Conforta-me recordar Álvares de
Nóbrega, intrépido defensor dos ideais da Liberdade, Igualde e Fraternidade.
Consola-me a memória dos resistentes de Machico na luta entre absolutistas e
liberais, na Revolta da Madeira, na “Revolução do Leite”, na Revolução dos
Cravos, numa palavra, contra a subserviência, que lhes fora imposta.
Foi
enternecedor ver os novos inquilinos do Palácio, distribuindo abraços e beijos tão dourados e
importados como a areia da praia amarela e, armados em novos descobridores,
desafiarem os comparsas: “Agora digam que Machico não é uma nação!” Só agora!
Não muito longe vai o tempo em que vituperavam a sete línguas que “Machico é
terceiro mundo”, a que um mais raquítico
secretário acrescentava: “Isto é o quarto mundo”. Eles, quero dizer estes,
também estavam lá, sentados à mesa do Orçamento,
mas ninguém os viu defender aquela que agora chamam “nação”. É urgente chamar a
contas quem tanto fez sofrer o Povo de Machico. É chegado agora o tempo da
reparação. É isto que espero ver daqui a
um ano no próximo “Mercado Quinhentista”.
“Quidquid
recipitur ad modum recipientes recipitur”. Perdoem-me
esta escorregadela para a “minha” tão gostosa língua de Cícero. Mas traduzo:
“Tudo aquilo que é recebido toma a forma do recipiente”, ou seja, cada qual
interpreta a mensagem segundo a sua sensibilidade. Para mim, é este invisível sumo alimentício
--- e muito mais --- que me fica do belo tríduo patriótico chamado “Mercado
Quinhentista”, prestando em troca o meu reconhecimento pelo ingente esforço dos
seus mentores e figurantes.
Termino,
na mesma linha de responsável optimismo, retomando a palavra de ordem com que a
Comissão Executiva, de que fiz parte, encimou na década de 1980 as comemorações da Descoberta: “NA ROSA DOS VENTOS, MACHICO À PROA!”
5.Jun.2015
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário