Tantas e traumatizantes
são as notícias que nos entram em casa --- tragédias no mar, tragédias em
terra, tragédias no ar, umas naturais, outras provocadas --- que, parece, só
delas deveria ocupar-se o olhar atento dos observadores, em vez de tecer esparsas
análises sobre o passado. No entanto, dois factos recentes, de sentido
contrário --- o reconhecimento dos erros passados, assumidos pela maioria na
Assembleia Regional e, por outro lado, a
recente preocupação da RTP/M em esconder a história do pós-Abril na
Madeira --- vieram reforçar-me os
argumentos para que não se apaguem os
trilhos de uma história que é nossa e corre o risco de passar em branco na
futura memória colectiva.
Por isso, retomo hoje as
vivências de Abril em Machico de 74/75 para reafirmar que o gérmen de todas os
movimentos e metamorfoses de uma sociedade reside nesta condição “sine qua non”:
o povo na centralidade dos acontecimentos.
Foi o caso ocorrido nas
terras de Tristão Vaz. Já vos dei conta do papel estratégico da população no
domínio da economia e da política. Ficámos a saber que, das muitas vicissitudes
por que passou o processo revolucionário em Machico, prevaleceu a vontade
popular contra as imposições dos poderes de então.
Mas, de permeio,
reorganizaram-se as hostes do fascismo agonizante, com redobrado furor contra o
povo que ia construindo um novo país e uma Madeira para todos. Tinha o
falacioso cartaz de FLAMA (Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira) ---
libertação igual a opressão, exploração e destruição do povo madeirense e
privilégios para uma minoria dos dominadores, senhorios da ilha. As suas armas
eram as bombas, a sua estratégia era a noite. Instrumentalizaram jovens, recrutados ao pormenor, que
armadilhavam casas e carros, chegando ao crime de entregar a um menor
inexperiente o explosivo assassino que rebentou nas mãos do próprio e o matou
quando se preparava para o colocar num carro visado pelos flamistas na sombra.
Um outro activista,, já maior de idade, ameaçado de morte pelos chefes do bando terrorista, se falasse ou
os denunciasse, apareceu mais tarde
enforcado na cadeia. Um dos atentados mais imundos aconteceu quando destruíram
os aposentos de quatro padres, professores no liceu e nas escolas do Funchal,
os quais viviam em comunidade sacerdotal na Rua do Pomba. Nem escapou o avião
militar estacionado na pista do aeroporto, depois removido para um terreno
particular em Água de Pena, (foto acima). Madeira e Porto Santo viviam num irrespirável
sobressalto, um autêntico inferno, sendo
que os alvos preferenciais eram os cidadãos que abraçaram os ideais do 25 de
Abril. Muito tempo depois, vim a saber,
da própria boca de um operacional (decepcionado por não ter sido agraciado com
um posto importante na orgânica do recém-formado governo regional) que a igreja
da Ribeira Seca estava no ponto de mira dos bombistas. Nada conseguiram porque
o templo estava sinalizado e vigiado vinte e quatro sobre vinte e quatro horas,
as mulheres vinham bordar em volta durante o dia e os homens formavam pelotões
rotativos durante a noite.
A “flama” assumia-se como
o braço armado do neo-fascismo entre nós. Até tinha bandeira e hino.
Curiosamente a bandeira, azul e amarela com a cruz ao meio, foi aquela que
depois veio a ser adoptada para ícone da Região Autónoma da Madeira. É
sintomático e permite as mais díspares interpretações (e era conversa comum
entre a gente mais atenta e esclarecida) o facto-coincidência de ter-se calado
o arsenal bombista a partir do dia em que tomou posse o presidente do governo
regional, ora cessante.
A ideologia da “flama”
espelhava-se nas palavras de ordem pintadas, pela calada da noite, em paredes
públicas e particulares: “Portugal, rua! Independência já” … “cubanos fora,
Madeira é nossa” e afins. E constituíam um aviso infalível: onde quer que aparecessem as inscrições murais
independentistas, inevitavelmente seguiam-se-lhes as bombas, um ou dois dias
depois. Eram o prenúncio certo.
Permanece fechado, a sete
gonzos, nos antros da (in)consciência
dos seus caudilhos a história tenebrosa
do poderosíssimo paiol que foi esse movimento, tão minoritário que só se
afirmava pelas mãos criminosas tintas de sangue inocente. Aconteceu que, como
acima, este bando estava tão talhada à medida da máfia siciliana que os
co-autores, em esgares de desespero,
acabam vítimas às armas que fabricaram. Por mais horripilante que custe
escrever e ler o que vos transmito, não posso calar o pavor que assolou os
madeirenses quando apareceu num dos fundos do litoral da ilha o corpo de um dos
principais flamistas, que eu bem conheci, correndo a versão de um misterioso
suicídio.
Tudo isto e muito mais
aconteceu. E as autoridades civis e militares, com todos os meios ao seu
alcance, nunca conseguiram identificar os terroristas domésticos, de dentro e de
ao pé de casa...
E aqui é que entra a
acção do Povo de Machico, na centralidade dos acontecimentos para defesa do seu
território. Ficará para um próximo “dia ímpar”. E para memória futura.
29.Abril.2015
Martins Júnior
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