Já aqui expressei a minha
indiferença, repúdio até, em tecer homenagens post-mortem seja a quem for:
pelo formalismo, pela hipocrisia e,
quantas, quantas vezes pela pequenez e incompetência dos panegiristas de
palanque, oportunistas de circunstância nos cerimoniais fúnebres.
Não posso, porém, deixar de evocar aqui uma Mulher, de 72 anos de idade, cujo corpo foi hoje a
sepultar em Lisboa, mas que continua viva para quem a conheceu de perto: uma “Cidadã do Mundo”, uma activista serena e
firmemente mobilizadora (os dois predicados ideais, tão difíceis de conciliar
numa liderança) convicta católica feminista, naquilo que diz respeito à
conquista do poder da Mulher, em paridade com o homem.
De fina educação
anglo-saxónica pela linha materna ( os seus avós conheceram e corresponderam-se
com Churchill, Graham Green, Henry James) e de sangue latino pela parte do pai,
aliou-se-lhe pelo casamento o apelo revolucionário ao consorciar-se com o filho
do corajoso anti-salazarista Arlindo Vicente, candidato à República, abdicando
depois em favor da candidatura do general Humberto Delgado. A vida de Ana
Vicente foi a de um andarilho mensageiro pela Europa, África, particularmente
em Angola, São Tomé e Príncipe, em campanhas de promoção das periferias, como
consultora da Nações Unidas para a População e
da Organização Mundial de Saúde. Em Portugal esteve na linha da frente
da reivindicação dos Direitos, Liberdades e Garantias, relevando a importância
da Nova Constituição da República Portuguesa e do Código Civil, ao lado de
Maria de Lourdes Pintassilgo, mais tarde na Comissão Nacional para a Condição
Feminina, a que presidiu, tendo sofrido, por sua esclarecida militância, a
prisão pela Pide antes do 25 de Abril e o saneamento “à esquerda”, pós-25 de Abril, no VI Governo Provisório. Exerceu o
jornalismo, como free-lancer e em publicações da especialidade em Espanha e Portugal,
no jornal anti-fascista “República”, por ex., e deu â estampa notáveis títulos de análise político-social,
entra os quais,”As Mulheres em Portugal na transição do milénio” e “Portugal visto de Espanha”.
Para ilustrar o seu
pensamento crítico, sintetizo-o em três tópicos, qual deles o mais impressivo:
Sobre os portugueses: ”Os portugueses são de um individualismo
doentio”.
Sobre a Mulher e seus adversários: Temos de identificar os nossos inimigos,
mesmo que sejam mulheres…Quanto maior o desequilíbrio do poder entre homens e
mulheres maior é o subdesenvolvimento”.
Sobre a Igreja, o sacerdócio e o funcionalismo
eclesiástico: Quando me dizem que a falta
de padres é uma desgraça para a Igreja Católica, eu acho que quanto menos
padres houver melhor”. E dá o exemplo da obra grandiosa de várias freiras
em São João do Estoril que se lançaram na educação e promoção num bairro de imigrantes marginalizados, querendo
com isto traduzir a verdadeira vocação do cristão liberto do institucionalismo
hermético das regras canónicas. Por onde se compreende tenha sido Ana Vicente a
pioneira em Portugal do movimento internacional de leigos denominado “Somos Igreja”, tão do desagrado das
hierarquias.
Acompanhei-a em encontros de
intelectuais e activistas cristãos e agnósticos, ao lado de Frei Bento
Domingues, Prof. Pe. Anselmo Borges, Catalina Pestana, Dr. Oliveira e Silva,
para citar apenas alguns.
E por que razão interrompi eu o tema
que vinha apresentando nestes dias e por
que, com maior razão, trago Ana Vicente hoje ao nosso convívio?
Sobretudo por isto: nesses encontros,
repetia-lhe sempre o pedido para vir à Madeira trazer a força da sua mensagem. Mas
não lho permitia o estado de saúde. Até que um dia, telefona-me e garante-me:
“Agora, decidi-me e vou”.
E veio. Na igreja da Ribeira Seca,
foi ela quem fez a homilia, em pleno altar, com toda a assembleia, os celebrantes
inclusive, presa das suas palavras.
Estou convencido que ela sentiu-se realizada naquele desígnio por que sempre
lutou: a Mulher, também participante do Sacerdócio de Cristo. Na tarde do mesmo
dia, 8 de Março, Dia da Mulher, voltou a falar no “Forum Machico” a uma
conceituada plateia de professores e cidadãos vivamente interessados.
Confesso: não sei que mais admirar em Ana
Vicente: se a sua brilhante trajectória de intelectual e militante, se o seu
tocante humanismo de, mesmo atormentada pelo vírus fatal, ter-se dignado subir
a encosta para estar fraternalmente com a humilde comunidade da Ribeira Seca.
Já lho agradecemos em
vida.
Queremos continuar a ouvir o eco das
suas palavras!
21.Abril.2015
Martins Junior
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