No turbilhão caótico dos
dias, instantes há que nos levam por atalhos e veredas onde a emoção e a razão
se fundem numa claridade, a um tempo, repousante mas terrível. E daí, do alto
da colina, a paisagem ganha aquela amplitude que só a verdade consegue
transmitir. Esta semana arrastou-me para dois cenários que se diluem numa única
e mesma conclusão: a vacuidade e, no limite, o cheiro nauseabundo de certas e
muitas flores que se oferecem aos mortos.
Cito o caso particular do
amigo e conterrâneo Tolentino de Nóbrega. Imaginar que ele emigrou e não volta
mais atinge os neurónios de quem com ele privava todos os dias.
Mas não menos dói o
branqueamento que as rosas mortuárias tentam (mas não conseguem) fazer das
nossas cobardias, dos nossos silêncios conspirativos, quando a pena do amigo comunicador brandia, certeira e
pesada, no dorso dos arrogantes poderes instalados. Agora, mais do que nunca, surgem de todos os arsenais da
comunicação loas, épicos morteiros, girândolas multicolores ao “jornalista
heróico”, ao “combatente sem medo”, enfim, ao “maior do jornalismo português”.
Tudo bem. Mas onde estavam esses pássaros canoros quando o Tolentino comia o
pão que o diabo do poder amassou… quando a Quinta Vigia o caluniava até ao tutano…
quando lhe moviam processos judiciais?... Calados, na sombra, na indiferença
que mata aos poucos. Quem se levantou, de cara erguida, a defendê-lo nas horas
mais dramáticas ou a alcandorá-lo no aceso da luta?
Devo confessar que não me conforta
nada, muito ao contrário, participar em funerais envernizados de oficialidade.
Até porque, na tela dos cinemas como no filme da vida, não raro é ver-se o assassino, aperaltado e grandes óculos
escuros, depositar coroas de flores na tumba da vítima…
Mais que homenagens, mesmo em vida,
os lutadores precisam é de operacionais solidários na hora.
Pior fiquei hoje, “Dia do
Combatente”, com as cerimónias religiosas, civis e militares em Machico e para
as quais já tinha recebido convite que, mandou-me a consciência terminantemente
rejeitar. E recusei porque tenho gravada ainda a tragédia de tantos jovens que
lá caíram em combate, das suas famílias, dos estropiados, dos inválidos
prematuros, dos deprimidos para sempre. Quem
e quais instituições se pavonearam nestas homenagens? Precisamente os titulares
acobertados no camuflado do Estado, do Exército, da Igreja. Todos co-autores de
assassinatos sangrentos contra vítimas indefesas, de um lado e de outro.
Heróis, sim, mas à força, todos os que, a meu lado, pagaram com o corpo ou com
a vida, os monopólios petrolíferos, o ouro e os diamantes daqueles cujas sôfregas
ambições não sentiam nenhum pejo em mandar saquear aquilo que não era seu.
Clandestino mas furioso era o “pó” (sinónimo de ódio surdo) de furriéis, sargentos
e oficiais milicianos contra os altos estrelatos que, assim se comentava,
“ganhavam mais uma comenda ao peito por cada militar morto em combate; e por cada comissão de dois
anos arranjavam dinheiro para comprar mais um prédio de luxo na Avenida de Roma”.
E são essas instituições que
hipocritamente vêm emproar-se, a toque de clarim, quando o que deviam fazer era
desaparecer dali envergonhados ou, no mínimo, ajoelhar-se e pedir perdão às
vítimas inocentes de outrora. Pranto e dor para elas. E, na mesma medida, o
nosso apreço por todos os que se manifestaram contra o regime então vigente,
jovens, muitos deles, universitários, que abandonaram o país, outros que foram
presos em Caxias e Peniche, padres e mestres que ousaram denunciar em Portugal
e no estrangeiro o genocídio colonialista.
Perdoem-me este desabafo,
mas hoje a emoção e a razão encontraram-se e mandaram que falasse assim. Porque
só pode falar em HOMENAGEM quem contribuiu ou ainda contribui, em tempo oportuno, para a vitória
das causas em que se empenharam os homenageados.
Para terminar, vou pôr a
rodar a toada plangente do grande Luís de Góis naquele fado coimbrão que vem de
longe:
Quando eu morrer, rosas brancas
Para mim ninguém as corte
Quem as não teve na vida
De que lhe servem na morte?...
11.Abr.2015
Martins Júnior
É preciso sempre um Sr. Padre Martins para colocar "o dedo na ferida"...E como o faz brilhantemente! Cumprimentos e anseio já o próximo "desabafo".
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