Calcorreando a encosta
que nos conduz à entronização anual do “25 de Abril” propus-me trazer comigo o
farolim que nos ajudará a descobrir as veredas que lá nos fizeram chegar. É,
pois, à luz dos acontecimentos ocorridos em Machico em 1974 que intuiremos o
genoma criador de todos os Abris da história: a posição central do Povo na
transformação da sociedade. Enquanto o Povo não ocupar a centralidade da,
chamemos, renovação ou revolução, nada será duradouro. É a lição da História, a
nossa também. Jamais poderá esquecer-se a “Crónica
de D. João I”, onde Fernão Lopes coloca no seu posto cimeiro o dinamismo do
Povo de Lisboa na recuperação da independência lusa face às ambições de
Castela. Embora não desmereça a figura
de um líder carismático na pessoa do
“Mestre de Avis”, o cronista do Reino apresenta o Povo como o grande
protagonista desse feito patriótico.
Ora, foi isso mesmo que a
população do concelho viveu, mas sobretudo na, então, vila de Machico. Como
testemunha ocular e narrador homodiegético, cedo me apercebi que o Povo, ainda
que escasso de letras e manuais, reserva no seu âmago o gérmen revolucionário,
o mais genuíno, e até ensina aos líderes
a metodologia estratégica e mais
certeira para atingir os objectivos.
Basta-lhe que não lhe ponham entraves
preconcebidos, que ele mesmo será capaz de desbravar o caminho. A isto chamo eu
a “centralidade” da concepção e da acção renovadora.
E foi no chão térreo da
vivência quotidiana que tudo começou. Aquilo que os teóricos catalogam de
estratégia revolucionária, o Povo viu, sem teoremas nem compêndios, que a condição “sine qua non” para o
êxito consistia em entrar directamente
nos três centros de decisão superior, o tripé de onde se abarca e determina
todo o processo social: a economia, a política e a cultura, nas suas mais
distintas vertentes.
Não é possível descrever,
senão sumarissimamente, os passos, os avanços e recuos e, de novo, as retomas
desta luta para influenciar o sector produtivo e ficar ali presente com
autoridade paralela ao empresariado, alterando as regras do jogo sujo da
exploração, fiscalizando o valor atribuído ao produtor, fixando preços nesse
produto.
Logo à cabeça, era
preciso atacar o monstro que subjugou gerações e gerações na ilha --- a colonia
--- cuja mais degradante expressão para as famílias era a proibição de construírem
uma habitação condigna Sacudir essa canga secular não foi tarefa pacífica,
acarretando ameaças dos grandes senhorios, processos judiciais, presidentes
municipais, oficiais de Finanças e até da própria Igreja, ela também senhoria
de vastas porções de terreno. Os Caseiros de Machico conseguiram unir milhares
de colonos em toda a ilha, a UCIM,(União dos Caseiros da Ilha da Madeira)
criaram o seu órgão de informação, o semanário “O Caseiro”, realizaram
plenários, até que conseguiram sair vitoriosos com a publicação do decreto
legislativo regional, denominado Decreto da Extinção do Regime da Colonia, em
1977.
Outra conquista
irreversível foi a fixação do preço/Kg de cana sacarina em 2$50, pagos no acto
de entrega e sob a vigilância de um representante dos produtores na balança de
pesagem. O quanto isto custou?! Ocupação dos engenhos, sobretudo o da fábrica
Hinton, impedindo a entrada de camiões carregados de milhares de molhos de cana
durante mais de quinze dias e, por fim, as bombas lacrimogéneas que o
brigadeiro Azeredo (governador civil e militar) mandou atirar contra a enorme
multidão apinhada frente ao Palácio de São Lourenço. Mas o Povo venceu!
Outrotanto se passou no
sector dos bordados, dessas “Lágrimas
correndo mundo”, como bem titulou o grande escritor Horácio Bento de
Gouveia num dos seus romances históricos. As mulheres de Machico, unidas a
outras centenas de bordadeiras da Ilha, chegaram a formar a sua Cooperativa, a
UBM (União das Bordadeiras de Machico), a qual foi tantas vezes tripudiada por
patrões das casas de bordados do Funchal, do Governo Regional e da Câmara Municipal de Machico, ocorrendo
cenas indescritíveis de agressão às mulheres dessa cooperativa de produção.
O mesmo poderia
desenvolver quanto ao sector comercial, quando a população decidiu abrir uma
outra cooperativa, esta de consumo, no centro da vila, como expressão do poder
do Povo contra o modelo comercialização/exploração e em resposta aos comerciantes
de então que se comportavam como lacaios dos poderosos contra o novo mundo
nascido em “25 de Abril”.
Fico-me hoje por este
capítulo, com os sucintos apontamentos de uma época vivida, suada e
transfigurada pela força da população que, nessa altura, organizadamente mas
decididamente, se colocou na centralidade das soluções no domínio da economia de
então para este concelho e, extensivamente, para a Ilha.
19.Abr.2015
Martins Júnior
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