Hoje o audiovisual oferece-nos um sádico paladar do mais requintado masoquismo. O paradoxo é total: desde as grandes catedrais ao mais humilde reduto de crentes, desde os sumptuosos cortejos das cidades, no “enterro do Senhor” com os acordes da marcha fúnebre de Chopin, até ao paroxismo das representações cruentas das flagelações nas Filipinas, os nossos olhos enchem-se do sangue impresso em sudários especiosos e nos ecrãs televisivos. E o povo acorre, como um pagante contrito que vem saldar uma dívida pessoal a Quem “morreu pelos seus pecados”. E bate no peito, lamenta-se e chora. E sente-se absolvido de uma pena imaginária.
Devo
desde logo apresentar o meu registo de sentimentos e de interesses nesta
matéria: preferia mil vezes que não houvesse sexta-feira santa. Na comunidade a
que pertenço também fazemos a Via Sacra pública, mas fazemo-la sob protesto. Porquê?
Porque
o sucedido neste dia é um tremendo libelo acusatório contra um dos maiores
crimes da história, perpetrado pela mão do Homem. E nunca haveria ter-se
chegado a tamanha atrocidade: assassinar Quem veio abrir os olhos à multidão
vítima da cegueira de séculos, de milénios. É aqui que se centra a matéria de
crime.
Que
autores e que instituição urdiram e executaram o plano maquiavélico deste
assassinato? Incrível, inimaginável: a Religião oficial da Judeia e os seus
mais altos titulares, os Sumos Sacerdotes Anás e Caifás. Os restantes agentes,
meros instrumentos compulsivos, até o próprio Pilatos, mais não foram que peões
de circunstância no xadrez deste hediondo processo religioso. Pode concluir-se que tudo se passou na linha
programática de um teocrático Estado Judaico-religioso, uma
Jihad antecipada. Não me parece corresponder estruturalmente à verdade dos
factos dizer-se que Jesus entregou-se à
morte. Na opinião de estudiosos biblistas esta entrega
voluntária configura-se, no limite, com um acto de suicídio. Pelo
contrário, Jesus foi assassinado! Reduzir o caso a um simples relato de que
“morreu na cruz” é muito pouco. Ele foi assassinado, chegando ao ponto de
verter suor de sangue quando pediu ao Pai:”Afasta de mim este cálice”, ou seja,
tira-me desta conjura e deste tormento.
Por
isso, percorremos a “Via Crucis” do Calvário sob protesto. Por nós, aqui e
agora, nunca teríamos consentido em tão horrenda sentença. A cruz não é apenas
o símbolo da generosidade e do perdão. É também o ignominioso padrão da
criminalidade sócio-religiosa, igual ou pior que as forcas e os fornos
crematórios de Auschwitz.
Não vou demorar-me nesta
revolta interior perante o outrora sucedido. Fico-me com o pensamento místico e
concreto de Blaise Pascal: “Jesus continua em agonia até ao fim dos tempos”. Ao
rememorar as diversas estações, fomos evocando as vítimas que os tempos nos deixaram,
Pe. António Vieira, Mahatma Gandhi, Teresa de Calcutá, Aristides Sousa Mendes,
Luther King, Catarina Eufémia, os
bandeirantes da Justiça, os sindicalistas abatidos, os prisioneiros das
ditaduras, as de ontem e as de hoje.
Sexta-Feira
Santa! Noite de luto histórico, de pesadelo universal, de revolta interior
contra os legisladores iníquos, contra os criminosos públicos que ainda hoje
continuam a matar!
3.Abr.2015
Martins Júnior
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