Porque
hoje é Domingo…
E
por sê-lo, o corpo repousa e a mente voa. Livre como um pássaro e desarvorado
como o vento, o espírito chega até onde não nos permitem os dias comuns. Por
isso não tem mapa de voo, nem sequer heliporto terminal. E aí é que surgem as
surpresas mais estranhas, não pensadas, quase esotéricas, saltitando nos lagos
imprevistos do pensamento-viajante de fim de semana. Umas vezes, com lampejos
inspiradores, outras sem nexo aparente, mas sempre com um que nos interpela e
nos persegue.
Foi
o que me sucedeu precisamente. Imaginem para onde me levou hoje la folle de la maison (a louca da casa)
como ironicamente definia Montaigne a nossa
mente?... Fez-me atravessar dez décadas e deixou-me no pico alto do ano 1917.
Abriu o livro de memórias e mostrou-me duas paisagens, dois retratos, dois hemisférios radicalmente opostos, qual
deles mais contrastante que o outro. E ambos enraizados na encosta do mesmo
mês: Outubro de 1917. Um deles, cercado de luz, uma “Senhora mais brilhante que
o sol”, uma azinheira rústica, repousante. O outro, um estouro retumbante, um
murro no trono, uma foice e um martelo, uma revolução. “Malhas que o Império
tece”…
Já
notastes, decerto, que me refiro a dois
acontecimentos, plantados ao mesmo tempo, mas de crescimento e frutificação tão
diversos! Ocorria o mês de Outubro de 1917. Na Rússia, consumava-se a revolução
bolchevique, inspirada no marxismo-leninismo. Em Portugal, na Cova da Iria,
dava-se o “milagre do sol”, consumando-se as aparições da Virgem, que passou a
chamar-se “de Fátima”.
Este
foi o texto linear que a mente, la folle
de la maison, me deu a ler no voo sem rumo deste Domingo. Declaro desde já
que hoje não tenciono perorar, nem sequer filosofar, sobre tão escaldante
dialéctica. Garanto-me, porém, a mim próprio, que farei o maior esforço de
hermenêutica para decifrar o enigma da concomitância destes dois pilares
históricos que marcaram um século da história e mexeram com as estruturas pensamentais,
económicas, culturais e sociais do mundo todo, a partir do continente europeu. É
da mais elementar filosofia o conhecido axioma de que “os extremos tocam-se”.
Monitorizar as linhas de intersecção onde os dois casos se tocam e se repelem –
eis uma tese que se impõe a todo aquele que procura a sabedoria, mesmo que não
se assuma como analista arguto dos fenómenos histórico-sociais. Em que medida
Rússia e Fátima serviram mutuamente de arma agressora ou de alavanca
colaboracionista no seu desenvolvimento, ao longo de cem anos?
É curioso notar o afã com que os promotores ou
propagandistas de um e outro factos se esmeram em programar a secular
efeméride, cujo depósito têm à sua guarda. “Pela aragem, conhecer-se-á quem vai
na carruagem”, significando este aforismo, no caso vertente, que pelos
cerimoniais, pelos discursos, pela opulência (ou não) dos protocolos, será possível
detectar aspectos fundamentais que, das duas mensagens, só virtualmente
visualizamos. Pela minha parte, guardo na reminiscência da infância, desde os
bancos do seminário até aos inflamados sermões das igrejas, a palavra de ordem
vigente de que “Nossa Senhora de Fátima veio a Portugal para acabar com a
Rússia e que, por isso, era preciso rezar muito”. Desde então, pairou-se-me no subconsciente a
ideia de que os dois casos estão ligados um ao outro.
Estas
e outras incógnitas, cujos contornos se ramificam superabundantemente, farão
parte dos meus projectos, não apenas nos voos de Domingo mas na serena e
porfiada análise de cada dia. Seria bom ter alguém por companhia neste exigente
percurso.
29.Jan.17
Martins Júnior
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