Se
acontecimentos há em que o mito se confunde com a realidade, é
na composição do Natal que se consuma
essa estranha e romântica simbiose. Com efeito, de tudo quanto enternece e
anima a sensibilidade popular, nada é seguro, sob a perspectiva histórica. A
começar pela data: o 25 de Dezembro não passa de mera convenção, a partir do
século IV, plagiada das Saturnalia, as festas romanas dedicadas
ao deus Sol, cujo pico coincidia com o dia mais longo do astro-rei,
requalificando-o os cristãos com o nascimento daquele que foi designado
como “Sol Justitiae”, Cristo-o Sol da
Justiça. Não é por acaso que nas igrejas orientais, o Natal é celebrado em 6 de
Janeiro. Depois, o requinte meteorológico de “uma noite fria”, quando, segundo
alguns exegetas, eram as noites cálidas a característica original daqueles
territórios. Pelo meio, a vaca e o
burrinho, que o próprio Ratzinger, enquanto Papa Bento XVI, se encarregou de
neutralizar no seu livro “JESUS”, afirmando que do registo evangélico não
consta nenhum vestígio de gado bovino ou
asinino. Mais enigmático é o “exército de anjos celestes” – aberrante
contradição – logo um “exército” para saudar e apadrinhar o “Príncipe da Paz”!!!
Mas
é com isto que se pinta o cenário do Natal. Tirem do presépio estes adereços e
verão que os turistas “voyeuristas” (nós e os outros) passarão pela “lapinha” como
gato sobre brasas, dirão mesmo “que graça tem aquilo”?... Pois, “Aquilo” é o
que mais importa. “Aquilo” é a força nuclear que agitou a sociedade de então e tentou
mobilizar as civilizações futuras! “Aquilo”
, o Invisível, que poucos procuram ver.
Curiosa
é a tradição dos Reis, nomenclatura que os evangelistas nunca mencionam, mas
tão-só os “Magos, vindos do Oriente”. Cientistas ou astrónomos ou astrólogos,
os Magos terão sido conduzidos por uma
estrela, que alguns investigadores identificam como um cometa e a tradição pintou-os
da cor das três “raças” primárias então conhecidas, branco, preto e amarelo,
simbolizando a adesão universal à mensagem de Belém. Esta tradição só começou a
sistematizar-se culturalmente a partir do século VIII. Neste “item”, não será
despiciendo assinalar a contradição cronológica entre a colagem dos Magos ao
estábulo onde nascera o Menino e a vingança de Herodes, “rei” de Jerusalém
quando se viu ludibriado pelos próprios Magos que não voltaram ao palácio para
dar informes sobre a exacta localização do “recém-nascido rei dos judeus”.
Herodes mandou matar todas as crianças “de dois anos para baixo”, significando
com isto que os Magos só terão encontrado Jesus dois anos depois de nascer. E
encontraram-no não no estábulo mas “em sua casa”. (Mt.-2,11).
A
todo este design romântico e fluido
chega o poeta e místico Francisco de Assis , que em 1223 (séc.XIII) cria e inaugura, pela primeira vez, na cidade
italiana de Créccio, a simulação de um presépio, a qual se tem perpetuado até
aos nossos dias, enriquecida pela fértil imaginação popular, com adereços miniaturais
de toda a espécie de motivos autóctones, desde o coreto e a banda de música, as vindimas e as ceifas, a
matança do porquinho, o lenhador autómato a rachar os troncos, a igrejinha, as
levadas, enfim, a vida anímica de um povo.
O
cortejo real dos Magos caiu na simpatia das classes “superiores”, nomeadamente
da Igreja e do Estado. A primeira promoveu o acontecimento, outorgando-se a si
mesma o privilégio da hegemonia do poder espiritual sobre o temporal - os reis
curvam-se diante do Menino, como seus fiéis vassalos – e mais tarde acumulou os
dois poderes na cátedra da Roma Pontifícia. Os Estados, por seu turno, reclamam
para os seus titulares o estatuto de paridade com os altos dignitários
eclesiásticos, por terem prestado a homenagem iniciática ao Fundador da Igreja e, daí, à sua propagação
no mundo de então. Cada instituição, por labirintos exclusivos e até
imperceptíveis, tenta canalizar ao seu domínio o ouro e o incenso da romagem
dos “Três Reis do Oriente”, daí tirando os melhores proventos. A este propósito cai-me debaixo dos olhos a reportagem
do El Mundo, onde se lê: “O Governo
de Carles Puigdemont convocou as entidades organizadores da tradicional
Cavalgada dos Reis Magos de Vic (Barcelona),
com transmissão na TV3, para transformá-la numa mega-manifestação política a favor
da independência da Catalunha”. As
próprias crianças, às centenas, transportarão amanhã bandeirinhas catalãs pelas
ruas de Vic, tendo-se esgotado todo o “stock” nas lojas da cidade. Porque é a
noite e o dia dos Reis. E eu acrescento, dos “reisinhos”, de cada “reizinho” do seu burgo ou do seu
bairro, do seu partido, da sua capoeira.
Por
isso, mais do que as grandes encenações de palco, prefiro nesta noite a alegria
pura, descontraída e feliz de cada povo, de cada sítio, de cada família, com os
cantares tradicionais, os votos alicorados de um novo ano, as “favas” do
bolo-rei, os rajões e as concertinas, tudo envolto num beijo de saúde e num abraço de libertação.
Porque, hoje, Rei é o Povo!
05.Jan.16
Martins Júnior
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