Tendo
acompanhado os passos da última viagem de Mário Soares e sendo-lhe tributados os dias ímpares deste SENSO &CONSENSO, é caso
para indagar sobre os motivos de tão
intensa dedicação. Todavia, mais do que as palavras e
emoções descritas durante a semana inteira, importa chamar à colação os factos
mais determinantes neste processo de homenagem. Que interesses e motivações
estarão na sua génese?
É
nos meandros da memória que vamos encontrá-los. Além da indesmentível grandeza
de estadista, nacional e internacionalmente reconhecida e justamente
alcandorada, emergem atitudes que, circunscritas embora a territórios insulares
de menores dimensões, fazem crescer a estatura cívica e humanista de Mário
Soares. É da nossa ilha que estou a falar.
Nenhum
outro governante foi tão maltratado pelos madeirenses (representados no governo
regional) como o foi Mário Soares. Os
corifeus do regime ditatorial PPD da
Madeira instrumentalizaram, por mais de uma vez, um punhado de arruaceiros “jagunços”
para insultar o Primeiro-Ministro, chegando ao ponto de agredi-lo com objectos humilhantes, atirados
de longe como nos pré-históricos cortejos do carnaval madeirense. No entanto,
nenhum outro governante, nem os do PPD, foi tão generoso e democrático para com
a Região. Lembro-me da consulta que
Mário Soares fez a todos as forças políticas, recebendo-as, uma a uma, e
aceitando sugestões para o Programa do
seu Governo. Aí manifestou-nos o seu interesse “no prosseguimento do diálogo
entre a UDP e o próprio governo”. Isto em 1976. Lembro-me também das volumosas
transferências financeiras enviadas para a Região nos governos de Soares, sem nunca exigir
contrapartidas, como as que fez o Primeiro Ministro Cavaco Silva, em 1986, de
que resultou o leonino contrato “Protocolo
de Reequilíbrio Financeiro”, que deixou as Câmaras na penúria. E, mais tarde,
foi ainda um Chefe do Governo PS, António Guterres, que em 1999 perdoou a dívida da Madeira, no montante de
110 milhões de contos (550 milhões de euros).
Compulsivos
argumentos factuais para que os madeirenses estejam gratos a Mário Soares!
A
título pessoal, a minha presença quase anónima nas exéquias do Fundador da
Democracia em Portugal tornou-se um imperativo de emoção e gratidão. Recolho,
entre tantos, apenas três eloquentes momentos, desconhecidos da opinião
pública. O primeiro e o segundo aconteceram, quer na Assembleia Regional, quer
na Câmara de Machico, estando, como independente, na ala da UDP e do PS, o que só por
si revela a abrangência democrática de Mário Soares.
Celebrava-se
com pompa e circunstância o dia da Autonomia, 1 de Julho de 1988, com sessão
solene no Salão Nobre da Assembleia, presidida pelo então Presidente da
República, Mário Soares, recheada ademais pelo colosso dos membros do Conselho
das Comunidades Madeirenses, todos eles escolhidos a-dedo pelo governo
regional. No meu discurso foquei
especificamente o despudor da relação Igreja-Governo, através do “Jornal da
Madeira” que, com a cara eclesiástica, servia de exclusivo panfleto do PPD, a
que ajuntei o testemunho que pessoalmente colhera entre os emigrantes, aquando
das visitas que empreendi a Venezuela e Austrália. E fi-lo nos seguintes
termos: “Este governo madeirense usa os emigrantes como arma de arremesso
político, porque apenas favorece os barões da emigração e despreza o emigrante
comum quando, na Madeira, precisa dos serviços da administração pública
regional”. Os gritos, os apupos desmiolados transformaram aquele Salão Nobre
numa selva enraivecida e tão tresloucada que me impediram de continuar.
Passados alguns minutos de barafunda tribal, o já falecido Dr. Nélio Mendonça, então presidente do
Parlamento, repôs o silêncio no recinto, atitude que muito me surpreendeu, dado
que a praxis ordinária era deixar correr o mar dos tubarões enquanto usava da
palavra. Tempos depois, na audiência que me concedeu em Belém, Mário Soares
desvendou o enigma, dizendo: “Perante a anarquia geral, enquanto o meu amigo
falava, fiquei atónito e disse ao ouvido do presidente da Assembleia: ou o
senhor põe isto na ordem ou então
levanto---me eu a fazê-lo”. Fiquei
esclarecido. E sentidamente reconhecido.
Noutra
altura, era eu presidente da Câmara e, passando por Machico, avisou-me, em tom
solidário, o Dr. Mário Soares, diante dos presentes. “Aguente-se, padre”!...
Ele bem sabia o que teria de passar a única câmara da oposição na ilha da Madeira,
face à prepotência da governação regional. Serviu-me de alento e coragem a premonitória recomendação, cuja sonoridade
ainda guardo bem viva e definida.
Em
10 de Junho de 1995, Dia de Portugal e das Comunidades, teve o Dr. Mário Soares
a gentileza e a “ousadia” de atribuir-me as insígnias de comendador, um ofício
que sempre abjurei, mas resolvi, enfim, aceitar, sabendo a simbologia cívica e moral que tal gesto significava nessa crucial
conjuntura. E fez questão de ser ele próprio a impor-me a condecoração na
cidade do Porto. Caiu o Carmo, caiu a Trindade, caiu a Quinta Vigia e caiu,
imaginem, o Paço Episcopal. Contra Mário Soares e contra mim. Basta ler o
Jornal da Madeira da primeira quinzena de Junho. O mais original e que revela a
servidão eclesiástica ao governo foi a homilia do bispo Teodoro Faria na Festa
de Santo Amaro, logo seguida de queixa formal da diocese ao “Conselho das
Ordens Honoríficas”, acusando Belém de “violar a Concordata entre Portugal e a
Santa Sé, pelo facto de comunicar a dita nomeação ao contemplado, designando-o
como Reverendo
Padre José Martins Júnior” . É um tratado de esquizofrenia “humano-divina”
o que vem publicado no JM, de 15.VI.95. Vale a pena olhar a “beleza” daquele
sacro linguado!... Hoje, ao reler essa enormidade, reconheço e afirmo, alto e
bom som, aquilo que na altura o pudor não mo consentia dizer: A Igreja
diocesana tem sido a barriga de aluguer do governo regional. Oxalá desista de
sê-lo, num futuro próximo. E
definitivamente.
A
Igreja, cordeirinho imolado no altar da Quinta Vigia, seguiu o “Voto de
Protesto e Condenação” que o PPD/PSD aprovou contra a condecoração no Parlamento Regional em 8 de Junho,
revéspera do Dia de Portugal. (Ler DN, 8.VI.95).
Entretanto,
Mário Soares prosseguiu, seguro e sereno, a sua marcha, enquanto a caravana
insular ficou no velho estaleiro do calhau roliço.
O
quanto, quanto tinha eu para contar nesta nau onde me coube embarcar no oceano da vida... Fico-me por aqui,
transcrevendo em epigrafe a simpatia e a afectividade com que o Dr. Mário Soares tratou este ilhéu, agora quase
octogenário e que ficaram gravadas no Livro de Honra do Município de Machico em
1997.
Retribuo-lhe
com os cravos vermelhos que carinhosamente deixei na sua tumba!
13.Jan.17
Martins Júnior
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