sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

NUNCA SE SABE PARA QUEM SE TRABALHA!... Um aborto a céu-aberto


Desde ontem até hoje, já nem sei contar quantos títulos me ocorreram para esta longa viagem dentro das quatro paredes da sala do nosso  Arquivo Regional. “Expropriados, vendidos, assaltados e escorraçados”… “Como pode uma árvore boa dar  um fruto podre?”… “Ó tempo volta pra trás”… “Um parto contra-natura”… E outros tantos, quase todos deprimentes, para estampar  publicamente o misto de desilusão e  repugnância que me causou uma breve consulta  ao “Jornal da Madeira”, de há 59 nove anos. Foi  a propósito de um soneto – “VEM,  SENHOR”! – que publiquei na edição de 25 de Dezembro de 1958, depois republicado na antologia de Luís Marino e no “Eco do Funchal” e, agora, para satisfazer a sugestão  solicitada por um amigo meu.
Percorrer aquelas páginas amarelecidas foi uma romagem de saudade. Recordar os colunistas de então, entre eles o Pe. Alfredo Vieira de Freitas, em secções distintas e respectivos criptónimos, o seu sobrinho, também poeta, António José, o fogoso deão da Sé Catedral Fulgêncio de Andrade, professores do Liceu, correspondentes em Lisboa, crónicas de viagem, os folhetins diários, alguns deles mais tarde compilados em romance. Passou-me no horizonte da memória o fabrico artesanal do jornal,  com os velhos e meticulosos compositores da tipografia (cada letra, um chumbo alinhado à mão no caixilho de madeira que, tantas vezes, também manuseei ao lado dos ‘homens da ferrugem’) enfim, um desfilar dos cheiros tóxicos das barras de chumbo derretendo a altas temperaturas,  as provas repetidamente corrigidas, os revisores, os jornalistas e até os ardinas que, pelas três da manhã,  vinham preparados para a faina, depois de uma “quentinha” ( café pingado de vinho) no café da esquina.
Era, então, o genuíno Jornal da Diocese. Embora fosse dirigido, algum tempo, pelo prof. Basto Machado,  chefe da Mocidade Portuguesa criada por Salazar, havia pudor e discrição para que o chamado ‘Estado Novo’ não tomasse a dianteira da Igreja, na orientação e paginação diárias. Lembrei-me dos sucessivos directores e chefes de Redacção, sacerdotes de primeira linha, Agostinho Goncalves Gomes, Maurílio de Gouveia, Jardim Gonçalves, Abel Augusto da Silva, Paquete de Oliveira.
Confesso que desisti de folhear o grosso volume encadernado e dei comigo ali, só, a cabeça entre as mãos, interiormente comovido e revoltado, perante o que fizeram do Jornal da Diocese. Arrancaram-lhe o coração, mas mantiveram a pele. E o que era Igreja viva, tornou-se por dentro pedra dura da política sectária, ao serviço de um herdeiro da ditadura do ‘Estado Novo’  e à qual deu o despudorado baptismo de ‘Madeira Nova’. O bispo Francisco Santana, o primeiro vendilhão do jornal e  do templo na ilha, entregou  a direcção  ao candidato  a dominador insular, como quem oferece uma filha virgem a um predador sem escrúpulos. O bispo Teodoro Faria vendeu-lhe a propriedade do Jornal, com menos dor que  Judas quando vendeu o Mestre por trinta dinheiros. O actual bispo dorme na cama que os predecessores doaram e deixa o Jornal na rua, semelhante a um deserdado, um sem-abrigo, um filho de pai incógnito à espera de  alma caridosa que o adopte e o compre como uma rês depenada. Nem que seja por 1 euro.
À maior parte dos que me lerem, talvez pareça um anacronismo, uma tolice até, revelar o estado de alma em que me prostrou a consulta de ontem. Porque não viveram os sacrifícios que os cristãos madeirenses fizeram pelo seu Jornal, os peditórios anuais em todas as freguesias, os esforços para não deixar cair a identidade da sua imprensa, os contributos factuais naquelas páginas, naquelas paredes, naqueles escritos, entre os quais me incluo, no dealbar dos verdes anos.
De que serviu tanto labor e a quem aproveitou tamanha resiliência em tempos difíceis?... Deveriam ser chamados à pedra os comparsas sem honra e sem lei que  ofereceram e alienaram a estranhos aquilo  que não era seu. Que fizeram da Igreja da Madeira uma vil moeda de troca. Ou, como há 1500 anos verberava Santo Agostinho de Hipona, os que transformaram a Igreja numa casta meretrix, uma meretriz casta, o mesmo que prostituta cara.  O “Jornal da Madeira”  é o mísero ex-libris a que chegou a Instituição diocesana: sem brilho, sem coluna, sem prestígio.  Lamentavelmente.


27.Jan.17

Martins Júnior          

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