Desde
ontem até hoje, já nem sei contar quantos títulos me ocorreram para esta longa
viagem dentro das quatro paredes da sala do nosso Arquivo Regional. “Expropriados, vendidos, assaltados e escorraçados”… “Como pode uma
árvore boa dar um fruto podre?”… “Ó
tempo volta pra trás”… “Um parto contra-natura”… E outros tantos, quase todos
deprimentes, para estampar publicamente o
misto de desilusão e repugnância que me
causou uma breve consulta ao “Jornal da
Madeira”, de há 59 nove anos. Foi a
propósito de um soneto – “VEM, SENHOR”! –
que publiquei na edição de 25 de Dezembro de 1958, depois republicado na
antologia de Luís Marino e no “Eco do Funchal” e, agora, para satisfazer a
sugestão solicitada por um amigo meu.
Percorrer
aquelas páginas amarelecidas foi uma romagem de saudade. Recordar os colunistas
de então, entre eles o Pe. Alfredo Vieira de Freitas, em secções distintas e
respectivos criptónimos, o seu sobrinho, também poeta, António José, o fogoso
deão da Sé Catedral Fulgêncio de Andrade, professores do Liceu, correspondentes
em Lisboa, crónicas de viagem, os folhetins diários, alguns deles mais tarde
compilados em romance. Passou-me no horizonte da memória o fabrico artesanal do
jornal, com os velhos e meticulosos
compositores da tipografia (cada letra, um chumbo alinhado à mão no caixilho de
madeira que, tantas vezes, também manuseei ao lado dos ‘homens da ferrugem’)
enfim, um desfilar dos cheiros tóxicos das barras de chumbo derretendo a altas
temperaturas, as provas repetidamente
corrigidas, os revisores, os jornalistas e até os ardinas que, pelas três da
manhã, vinham preparados para a faina,
depois de uma “quentinha” ( café pingado de vinho) no café da esquina.
Era,
então, o genuíno Jornal da Diocese. Embora fosse dirigido, algum tempo, pelo
prof. Basto Machado, chefe da Mocidade
Portuguesa criada por Salazar, havia pudor e discrição para que o chamado ‘Estado
Novo’ não tomasse a dianteira da Igreja, na orientação e paginação diárias.
Lembrei-me dos sucessivos directores e chefes de Redacção, sacerdotes de
primeira linha, Agostinho Goncalves Gomes, Maurílio de Gouveia, Jardim
Gonçalves, Abel Augusto da Silva, Paquete de Oliveira.
Confesso
que desisti de folhear o grosso volume encadernado e dei comigo ali, só, a
cabeça entre as mãos, interiormente comovido e revoltado, perante o que fizeram
do Jornal da Diocese. Arrancaram-lhe o coração, mas mantiveram a pele. E o que
era Igreja viva, tornou-se por dentro pedra dura da política sectária, ao serviço
de um herdeiro da ditadura do ‘Estado Novo’ e à qual deu o despudorado baptismo de ‘Madeira
Nova’. O bispo Francisco Santana, o primeiro vendilhão do jornal e do templo na ilha, entregou a direcção ao candidato a dominador insular, como quem oferece uma
filha virgem a um predador sem escrúpulos. O bispo Teodoro Faria vendeu-lhe a
propriedade do Jornal, com menos dor que Judas quando vendeu o Mestre por trinta
dinheiros. O actual bispo dorme na cama que os predecessores doaram e deixa o
Jornal na rua, semelhante a um deserdado, um sem-abrigo, um filho de pai
incógnito à espera de alma caridosa que
o adopte e o compre como uma rês depenada. Nem que seja por 1 euro.
À
maior parte dos que me lerem, talvez pareça um anacronismo, uma tolice até,
revelar o estado de alma em que me prostrou a consulta de ontem. Porque não
viveram os sacrifícios que os cristãos madeirenses fizeram pelo seu Jornal, os
peditórios anuais em todas as freguesias, os esforços para não deixar cair a
identidade da sua imprensa, os contributos factuais naquelas páginas, naquelas
paredes, naqueles escritos, entre os quais me incluo, no dealbar dos verdes
anos.
De
que serviu tanto labor e a quem aproveitou tamanha resiliência em tempos
difíceis?... Deveriam ser chamados à pedra os comparsas sem honra e sem lei que
ofereceram e alienaram a estranhos
aquilo que não era seu. Que fizeram da
Igreja da Madeira uma vil moeda de troca. Ou, como há 1500 anos verberava Santo
Agostinho de Hipona, os que transformaram a Igreja numa casta meretrix, uma meretriz casta, o mesmo que prostituta cara. O “Jornal da Madeira” é o mísero ex-libris a que chegou a Instituição
diocesana: sem brilho, sem coluna, sem prestígio. Lamentavelmente.
27.Jan.17
Martins Júnior
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