É
este um apontamento que me perseguiu em toda a quadra natalícia. E porque é
hoje, dia do Santo Amaro, que na tradição madeirense se queimam os
últimos cartuxos das estrelinhas saltitantes, ainda chego a tempo de deixar
cair no chão da “lapinha” esta reflexão, tão estranha quanto evidente.
Coincidentemente,
duas notícias, ainda frescas da véspera, vieram chamar-me à liça. A primeira
tem a ver com o elucidativo trabalho que uma ilustre investigadora da nossa Universidade acaba de
dar a conhecer sobre o bullying nas escolas da RAM, concluindo
que 10% dos alunos são vítimas desse tipo de violência. O segundo caso, mais
trágico e repugnante, foi o assassinato, a sangue frio, de um homem na pacata freguesia do Monte, sob
o olhar protector da Santa Padroeira. Para bálsamo dos crentes, ouviu-se a
petição: “Que Nossa Senhora da Paz que tem aqui o seu monumento conceda a paz
aos residentes nesta paróquia”.
Paz…Paz…
Paz… e outra vez Paz! Foi o refrão - saudação e oração - que mais encheu os dias, as horas, os
cerimoniais litúrgicos do Natal e Ano Novo. “Os anjos anunciam e trazem a Paz… Os
profetas garantem a Paz à chegada do Messias… Ele é o Príncipe da Paz”. E
clamorosas voam em reboada instintivas preces:
“Senhor dá-nos a Paz, Virgem dá-nos a Paz”!
É
a estas frases desarticuladas que eu chamo Requerimento
liminarmente indeferido. Por mais estranho que nos pareça, tal pedido não passa de um falacioso atestado
de inimputabilidade, em que toda a responsabilidade pessoal ou colectiva é atrevidamente
descartada. Atira-se para a estratosfera da Divindade aquilo que é trabalho exclusivamente
nosso. Respeito todas as versões ou opiniões divergentes daquela que, após
ponderada reflexão, tentarei apresentar.
Começo,
desde logo, por formular a mais comezinha das perguntas: Qual é o pai e qual é
a mãe que não desejam que todos os filhos se entendam e vivam pacificamente
como irmãos?... Nenhum, seguramente. Mas esse desiderato só é possível se os
descendentes, os herdeiros, fizerem por isso. Podem os progenitores impetrar
aos filhos que vivam em paz, mas de nada servirão o seu apelo, a sua oração,
talvez as suas lágrimas, se neles persistir uma reiterada recusa de
entendimento mútuo.
Em
linguagem antropomórfica, apliquemos esta evidência à relação entre o homem e
Deus, entre o mundo e o Supremo
Ordenador do Universo. Depressa chegaremos à conclusão de que é Deus quem nos
pede insistentemente: “Pela vossa saúde,
entendam-se. Pela felicidade vossa e minha, façam o favor de construir a Paz”.
Essa é a nossa tarefa. De mais ninguém. Só por requintada hipocrisia e por oportunista
desvio psíquico de transfert se
endossa para o invisível aquilo que só nós, visivelmente, podemos elaborar.
Daqui, não será difícil admitir que Deus – porque respeita a liberdade do ser
humano – reconhece-se impotente perante os conflitos pessoais, a violência doméstica,
as cenas de bullying, as guerras
entre as religiões e entre as nações. Mantenho a convicção de que certas preces
e práticas litúrgicas mais não são que uma fuga à responsabilidade pessoal e
colectiva.
Porque
a Paz não se dá de graça. Não é um pó mágico a custo zero. A Paz paga-se. E a
factura chama-se mentalidade, educação, sensibilidade vicinal, visibilidade
social, mundividência do presente e do futuro. E sobretudo, renúncia: aos
megalómanos complexos de superioridade, à avidez de mesquinhos interesses, ao
gesto tribal, à palavra desbragada, selvagem. Perguntem ao novo inquilino da
Casa Branca se será capaz de abandonar, por imperativo religioso, essa asquerosa boçalidade de reeditar, na
fronteira com o México, o vergonhoso Muro da vergonha, abatido, em 1989, pelo
braço do Homem e não pelas asas dos anjos de Belém.
A
prosseguir esta corajosa incursão, seria um filão transbordante de considerandos
dinamizadores. Fico-me por aqui,
esperando ter contribuído para o desanuviamento ideológico com que a inércia
comodista, disfarçada de crença e tradição, nos tem amputado a autonomia de
pensamento e acção, conducente à nossa quota de responsabilização pelo mundo em
que vivemos. Cada cidadão é um monumento da Paz.
“Natal
é sempre que o Homem quiser”.
15.Jan.17
Martins Júnior
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