Desçamos
hoje à terra, acarinhemos os “amigos fiéis”, os que nos guardam, os que nos
alimentam, os que nos inspiram, os que nos cantam e, por vezes, desencantam. Mais
concretamente, vamos ao “zoocampus” mais próximo da nossa residência. E, se
possível, convidemo-los a caminhar em pacífica romaria até ao adro da igreja
dos Prazeres, ou da Sé de Lisboa ou até à colunata de Bernini, na Praça de São Pedro de Roma.
Porque
hoje é dia de Santo Antão.
É
dia de sacralizar o reino animal, desde aqueles que ganharam a nossa estimação
até aos que se atiçam à nossa sombra. É bucólico, romântico e divertido ver o
hissope de água benta debruçar-se carinhosamente sobre os nossos “peluchos”
vivos, trazidos com ternura maior nos braços dos seus donos.
Porque
é dia de Santo Antão.
E
o patriarca dos monges dos séculos III e IV da nossa era, Santo Antão, é o seu
Pai Natal abençoado, trazendo ao pé do cajado em cruz um porquinho bem papudo
ou um coelhinho matreiro. É um mimo de sensibilidade criativa o ritual de
orações e jaculatórias que lhe são dirigidas
neste dia. Cito algumas delas, colhidas textualmente:
Santo Antão interceda
junto a Deus para curar o meu cachorro Bento que está sofrendo com problemas na
coluna. Que Bento fique bom e volte a andar. Amen. (Renata).
Santo Antão proteja os ‘meus
filhos de quatro patas´, o Cacau, o Pitty, o Tandy e o Sansão, porque algum
vizinho maldoso está colocando veneno para matá-los. (Anónimo).
Santo Antão, ajuda meu
cão Frederico a ter vida melhor, ficar dentro da casa da minha irmã. Amen. (Elisete)
O
que, porém, poucos crentes conhecem é a evolução do seu venerando ícone,
bonacheirão e pródigo em deslizar a mão
nos macios pelos do seu lulu. É que a
génese da devoção ao Santo Abade tem uma narrativa estranha e diametralmente
oposta aos rituais com que hoje nos
sensibilizamos tanto. A sublimação das nossas crenças tem destes contornos – e o
hagiológio cristão medieval mostra-os amplamente
– ao ponto de inverter por completo a versão original e traduzi-la numa veste
contrária, mas edificante.
É
o caso de Santo Antão. Filho de gente
nobre, tendo herdado lautas riquezas, conheceu os prazeres mundanos, mas um dia
decidiu distribuí-las pelos pobres e refugiou-se no deserto, onde passou o
resto da sua vida, em mortificações,
penitências e orações, sempre espicaçado por remorsos antigos, que lhe
devoravam a paz e o sono. Sentia o demo
a rondá-lo, dia e noite, e ao qual se opunha veementemente com o antídoto dos cilícios e místicas
asceses. Mas o demónio, cada vez que era derrotado, redobrava os ataques. ”Enviava-lhe
animais selvagens enquanto estava em vigílias nocturnas e em plena noite todas
as hienas no deserto saíam das tocas e rodeavam-no. Tendo-o no centro abriam as
fauces e ameaçavam mordê-lo.
Sucintamente,
são estas as narrativas primitivas. E as imagens por que é representado o nosso
Santo Abade estão configuradas nos animais que traz na fímbria do velho hábito
de eremita. Portanto, os animais foram para Santo Antão as visões disformes,
macabras, dos demónios, seus perseguidores.
Mas
o milagre da crença popular e a
criatividade imaginativa dos devotos, ao longo dos séculos, trocaram as bolas
ao “demónio”. De tal forma que os animais, antes perturbadores e furibundos,
transformaram-se em protegidos e amados de Santo Antão. A força da tradição e a
sua metamorfose ao serviço da sublimação
das tendências. Curioso e simpático o rio que transporta os sedimentos de
outrora!
E assim se transformou o zoo numa imensa
catedral. Nesta deriva positiva ( e descontadas certas ridículas superstições como
as que acima citei) hoje é sacralizada a
natureza, é exaltada a ecologia, é respeitado o código dos direitos dos animais, companheiros de viagem em toda a
história do homem sobre a terra.
17.Jan.17
Martins Júnior
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