O
guião tem todos os ingredientes para tornar famoso, por desconcertante, o filme
proposto: para uns será uma almofada de paz no turbilhão do mundo rolante, para
outros será o tumulto destruidor da paz dogmática em que vegeta a podridão dos
cadáveres ambulantes.
Estamos no grande tribunal do mundo.
Nada lhe falta para a tramitação processual do ordenamento jurídico vigente: o
réu, a acusação e a defesa. Neste fórum judicial ganha a defesa,
estrategicamente promovida ao estatuto de juiz da causa.
Oh, tomara haver aí um cineasta de
génio (e de uma coragem do tamanho do génio) para projectar nas paredes de todo
o planeta o maior, o mais belo, o mais transcendente julgamento da história
humana – infinitamente superior às sentenças de Salomão!
O guião – verídico e não imaginativo –
lemo-lo e ouvimo-lo hoje no Livro, mais precisamente em João, o Evangelista
narrador. Uma mulher é apanhada em flagrante delito de adultério. O legislador
comina o crime com a pena capital, sujeitando-a ao apedrejamento em acção
sumária. Apresentam-se, de imediato, a acusação e a defesa. Acusadores e
defensores têm entre si um conflito congénito, irresolúvel, sem qualquer
hipótese de conciliação, já por força do respectivo estatuto, já e sobretudo
porque há uma luta feroz, mais que tribal e assassina, por parte da acusação –
os escribas-doutores da lei, os homens do dinheiro - os fariseus – e os
titulares do poder religioso – os pontífices Anás e Caifás e seus subalternos. Do
lado da defesa, um só: o operário carpinteiro de Nazaré, promotor de um mundo
novo, liberto da ditadura e da hipocrisia dos poderes reinantes, consignados
aos acusadores.
É preciso assentar a visão certeira no único
móbil motivador da sanha dos acusadores: servir-se da ré para incriminar o Defensor,
o Nazareno. “Era uma armadilha perfeita”, esclarece o próprio narrador, ao
transcrever a pergunta capciosa e peçonhenta dos acusadores, seus inimigos
figadais: “Mestre, o que é que dizes a isto? Aplicam-se os normativos da Lei de
Moisés, ou achas que não”? Que terrível dilema! O vírus fatal da acusação
transforma o Defensor em Juiz. O incumprimento da Lei, despenalizando a ré, conduzi-lo-ia infalivelmente à pena de morte.
Mas o Mestre, de uma intuição
acutilante, conhecedor do íntimo dos corruptos acusadores, não hesitou em tomar a defesa da pobre mulher.
O pó do chão onde a cena se passou foi o código penal mais eloquente e luminoso
para ditar a sentença. Vale a pena o
texto citado. “Todos eles foram abandonando o recinto, a começar pelos mais
velhos”. Em pleno tribunal a céu aberto, só os dois: a mulher e o Defensor-Juiz:
“Eu não te condeno, mulher, vai em paz, mas dá um novo rumo à tua vida”.
Toda a Jerusalém, casas, terras,
pessoas, foram tomadas de sobressalto perante tão estranha sentença. Quanto ao
Mestre, cresceram os rancorosos impulsos das classes dominantes, os acusadores,
que à uma se acirraram até aquela noite fatídica em que, pelas mãos de um
traidor, viram consumados os seus ferozes intentos.
Transpondo
literalmente para os nossos dias o guião de há dois mil anos, nem seria
necessário o cineasta de génio e de coragem. Basta apenas abrir os olhos e ver
aqui e agora a reprise ou a clara reconstituição
dos factos descritos: os mesmos legisladores corruptos, os mesmos juízes netos
e bisnetos de moura prontos a condenar a mulher, os mesmos hierarcas galopantes
carreiristas (como diz Francisco Papa) carcereiros dos templos, dogma numa mão
e excomunhão na outra, enfim, os que, em nome da lei mais esquálida e cruel,
matam o que de mais nobre e digno tem a psicologia humana. E, de longe a longe,
de everest em everest, encontraríamos um argentino emigrante, inquilino romano,
viajante sem medo, clamando a todo o mundo que mais importante que o amor à lei e mais forte
que ela é a Lei do Amor.
07.Abr.19
Martins
Júnior
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