domingo, 7 de abril de 2019

SENTENÇA ‘ESCANDALOSA’: A MULHER INFIEL; OS ACUSADORES ADVOGADOS, BANQUEIROS E HIERARCAS, TODOS CORRUPTOS; UM JUIZ FORA DE LEI


                                                                   

           O guião tem todos os ingredientes para tornar famoso, por desconcertante, o filme proposto: para uns será uma almofada de paz no turbilhão do mundo rolante, para outros será o tumulto destruidor da paz dogmática em que vegeta a podridão dos cadáveres ambulantes.
         Estamos no grande tribunal do mundo. Nada lhe falta para a tramitação processual do ordenamento jurídico vigente: o réu, a acusação e a defesa. Neste fórum judicial ganha a defesa, estrategicamente promovida ao estatuto de juiz da causa.
         Oh, tomara haver aí um cineasta de génio (e de uma coragem do tamanho do génio) para projectar nas paredes de todo o planeta o maior, o mais belo, o mais transcendente julgamento da história humana – infinitamente superior às sentenças de Salomão!
         O guião – verídico e não imaginativo – lemo-lo e ouvimo-lo hoje no Livro, mais precisamente em João, o Evangelista narrador. Uma mulher é apanhada em flagrante delito de adultério. O legislador comina o crime com a pena capital, sujeitando-a ao apedrejamento em acção sumária. Apresentam-se, de imediato, a acusação e a defesa. Acusadores e defensores têm entre si um conflito congénito, irresolúvel, sem qualquer hipótese de conciliação, já por força do respectivo estatuto, já e sobretudo porque há uma luta feroz, mais que tribal e assassina, por parte da acusação – os escribas-doutores da lei, os homens do dinheiro - os fariseus – e os titulares do poder religioso – os pontífices Anás e Caifás e seus subalternos. Do lado da defesa, um só: o operário carpinteiro de Nazaré, promotor de um mundo novo, liberto da ditadura e da hipocrisia dos poderes reinantes, consignados aos acusadores.
         É preciso assentar a visão certeira no único móbil motivador da sanha dos acusadores: servir-se da ré para incriminar o Defensor, o Nazareno. “Era uma armadilha perfeita”, esclarece o próprio narrador, ao transcrever a pergunta capciosa e peçonhenta dos acusadores, seus inimigos figadais: “Mestre, o que é que dizes a isto? Aplicam-se os normativos da Lei de Moisés, ou achas que não”?   Que terrível dilema! O vírus fatal da acusação transforma o Defensor em Juiz. O incumprimento da Lei, despenalizando a ré,  conduzi-lo-ia infalivelmente à pena de morte.
         Mas o Mestre, de uma intuição acutilante, conhecedor do íntimo dos corruptos acusadores,  não hesitou em tomar a defesa da pobre mulher. O pó do chão onde a cena se passou foi o código penal mais eloquente e luminoso  para ditar a sentença. Vale a pena o texto citado. “Todos eles foram abandonando o recinto, a começar pelos mais velhos”. Em pleno tribunal a céu aberto, só os dois: a mulher e o Defensor-Juiz: “Eu não te condeno, mulher, vai em paz, mas dá um novo rumo à tua vida”.
         Toda a Jerusalém, casas, terras, pessoas, foram tomadas de sobressalto perante tão estranha sentença. Quanto ao Mestre, cresceram os rancorosos impulsos das classes dominantes, os acusadores, que à uma se acirraram até aquela noite fatídica em que, pelas mãos de um traidor, viram consumados os seus ferozes intentos.
Transpondo literalmente para os nossos dias o guião de há dois mil anos, nem seria necessário o cineasta de génio e de coragem. Basta apenas abrir os olhos e ver aqui e agora a reprise ou a clara reconstituição dos factos descritos: os mesmos legisladores corruptos, os mesmos juízes netos e bisnetos de moura prontos a condenar a mulher, os mesmos hierarcas galopantes carreiristas (como diz Francisco Papa) carcereiros dos templos, dogma numa mão e excomunhão na outra, enfim, os que, em nome da lei mais esquálida e cruel, matam o que de mais nobre e digno tem a psicologia humana. E, de longe a longe, de everest em everest, encontraríamos um argentino emigrante, inquilino romano, viajante sem medo, clamando a todo o mundo que  mais importante que o amor à lei e mais forte que ela é a Lei do Amor.   

          07.Abr.19
         Martins Júnior

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