sexta-feira, 18 de novembro de 2022

“EU, DENNYS, 16 ANOS, UCRANIANO, FUGIDO DE KHARKIV… HOJE, EM SANTA CRUZ DA ILHA DA MADEIRA”

                                                                      


      Foi uma tarde que valeu décadas de história e um tempo sem termo de emoções intraduzíveis no melhor glossário de psicologia. Nunca tal se ouviu ter acontecido numa escola da  Madeira. Teria de ser na estrada leste da ilha, freguesia e concelho de Santa Cruz.

         Por proposta das docentes do núcleo de Filosofia, aceita falar  sobre a filosofia da vida e a filosofia das guerras. Causou-me notória impressão e a mais amistosa simpatia verificar a atenção dos cerca de cem alunos presentes sobre o poder da filosofia tanto nas decisões do quotidiano como nas grandes opções existenciais. Quanto ao monstro irracional da guerra, expressão da despromoção da dignidade humana, tentei demonstrar o aproveitamento da religião para branquear  as ambições assassinas dos regimes imperialistas, caso dos russos na Ucrânia e das tropas portuguesas na guerra colonial de 1961-1974.

         Mas o imprevisto aconteceu, o melhor e o mais impressivo daquelas duas horas de reflexão. Aconteceu quando uma das docentes anuncia a entrada em cena de um jovem estudante ucraniano, recente aluno daquela escola. Perante a quase incredulidade da assembleia (e a minha também apresenta-se um rapaz, de semblante sofrido e voz magoada, mas convincente, e começa com as palavras que citei em epígrafe. Chamo-me Dennys, nasci em Kharkiv….

E, com uma calma tão estoica quanto a frieza austera do seu inglês, traduzido pela sua distinta professora, vai desfiando a dolorosa fuga da  pátria ucraniana, mostrando em vídeo a casa destruída, donde fugimos (o meu  pai, a minha  mãe, o meu irmão mais velho e o cão) apenas com a roupa, documentos e dinheiro… ali a escola onde eu estava e também destruída… Ao sairmos, as bombas rebentavam atrás de nós… Só em 17 de Março, quase um mês depois, conseguimos chegar à Roménia… A seguir, percorremos mil quilómetros por dia, atravessámos Hungria, Eslovénia, Itália, Espanha e, cinco dias depois, chegámos a Évora, onde fomos bem recebidos. À pergunta, formulada por um colega da escola de Santa Cruz, sobre a vinda para a Madeira, respondeu: É uma ilha, estamos mais isolados, mais longe da guerra.

Nas palavras de Dennys pela opção ilha da Madeira subentendia-se o trauma irreprimível que a guerra lhe deixara no continente europeu. Na magna assembleia escolar ninguém ficou indiferente ao testemunho vivo do jovem de 16 anos. Nem a própria professora-tradutora conseguiu conter a emoção. A cada parágrafo crescia a emoção em todos quantos ali se encontravam. E terminou agradecendo à escola, aos professores e aos colegas  a gentileza e compreensão com que o receberam. Nesta micro-reportagem, omiti a foto do jovem depoente, por respeito à sua privacidade, em termos publicitários. Soubemos, mais tarde, que o pai do Dennys é engenheiro e a mãe é médica.

Tarde histórica, para mim, embora intranquila, por momentos revoltante, “ver” ali uma vítima,  corpo vivo de entre o genocídio perpetrado pelos russos na Ucrânia! Mensagem de solidariedade global pelo martirizado povo ucraniano!

Às docentes de Filosofia da Escola de Santa Cruz o meu vibrante Voto de Louvor pela iniciativa e pela personalidade autónoma, corajosa, que tal iniciativa incorpora, paradigma exemplar para outras escolas da Região Autónoma da Madeira.

Ao Dennys, o meu abraço solidário a todo o seu povo e o meu agradecimento pela oferta, a meu pedido, do texto da sua conferência. Ficará guardado no meu tesouro pessoal, para sempre vivo como vivo foi o seu testemunho de hoje.  

          17.Nov.22

Martins Júnior

1 comentário:

  1. É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e, quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal nenhum que ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro: - o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro.”
    P. António Vieira (1668)

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