Foi
uma tarde que valeu décadas de história e um tempo sem termo de emoções
intraduzíveis no melhor glossário de psicologia. Nunca tal se ouviu ter
acontecido numa escola da Madeira. Teria
de ser na estrada leste da ilha, freguesia e concelho de Santa Cruz.
Por proposta das docentes do núcleo de
Filosofia, aceita falar sobre a
filosofia da vida e a filosofia das guerras. Causou-me notória impressão e a
mais amistosa simpatia verificar a atenção dos cerca de cem alunos presentes
sobre o poder da filosofia tanto nas decisões do quotidiano como nas grandes
opções existenciais. Quanto ao monstro irracional da guerra, expressão da
despromoção da dignidade humana, tentei demonstrar o aproveitamento da religião
para branquear as ambições assassinas
dos regimes imperialistas, caso dos russos na Ucrânia e das tropas portuguesas
na guerra colonial de 1961-1974.
Mas o imprevisto aconteceu, o melhor e
o mais impressivo daquelas duas horas de reflexão. Aconteceu quando uma das
docentes anuncia a entrada em cena de um jovem estudante ucraniano, recente
aluno daquela escola. Perante a quase incredulidade da assembleia (e a minha
também apresenta-se um rapaz, de semblante sofrido e voz magoada, mas
convincente, e começa com as palavras que citei em epígrafe. Chamo-me Dennys, nasci em Kharkiv….
E,
com uma calma tão estoica quanto a frieza austera do seu inglês, traduzido pela
sua distinta professora, vai desfiando a dolorosa fuga da pátria ucraniana, mostrando em vídeo a casa
destruída, donde fugimos (o meu pai, a minha mãe, o meu irmão mais velho e o cão) apenas
com a roupa, documentos e dinheiro… ali a escola onde eu estava e também destruída…
Ao sairmos, as bombas rebentavam atrás de nós… Só em 17 de Março, quase um mês
depois, conseguimos chegar à Roménia… A seguir, percorremos mil quilómetros por
dia, atravessámos Hungria, Eslovénia, Itália, Espanha e, cinco dias depois,
chegámos a Évora, onde fomos bem recebidos. À pergunta, formulada por um
colega da escola de Santa Cruz, sobre a vinda para a Madeira, respondeu: É uma ilha, estamos mais isolados, mais
longe da guerra.
Nas
palavras de Dennys pela opção ilha da Madeira subentendia-se o trauma
irreprimível que a guerra lhe deixara no continente europeu. Na magna
assembleia escolar ninguém ficou indiferente ao testemunho vivo do jovem de 16
anos. Nem a própria professora-tradutora conseguiu conter a emoção. A cada
parágrafo crescia a emoção em todos quantos ali se encontravam. E terminou
agradecendo à escola, aos professores e aos colegas a gentileza e compreensão com que o receberam.
Nesta micro-reportagem, omiti a foto do jovem depoente, por respeito à sua
privacidade, em termos publicitários. Soubemos, mais tarde, que o pai do Dennys
é engenheiro e a mãe é médica.
Tarde
histórica, para mim, embora intranquila, por momentos revoltante, “ver” ali uma
vítima, corpo vivo de entre o genocídio
perpetrado pelos russos na Ucrânia! Mensagem de solidariedade global pelo
martirizado povo ucraniano!
Às
docentes de Filosofia da Escola de Santa Cruz o meu vibrante Voto de Louvor
pela iniciativa e pela personalidade autónoma, corajosa, que tal iniciativa
incorpora, paradigma exemplar para outras escolas da Região Autónoma da
Madeira.
Ao
Dennys, o meu abraço solidário a todo o seu povo e o meu agradecimento pela
oferta, a meu pedido, do texto da sua conferência. Ficará guardado no meu
tesouro pessoal, para sempre vivo como vivo foi o seu testemunho de hoje.
17.Nov.22
Martins Júnior
É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e, quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal nenhum que ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro: - o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro.”
ResponderEliminarP. António Vieira (1668)