quarta-feira, 25 de maio de 2016

MACHICO E VENEZA - Recordações e desilusões

                                                    

Hoje vou deixar  a Ásia em paz e vou rumar até Veneza. Ao dizer “Ásia”, digo  os  calores do deserto, ontem calmos e hoje turbulentos, digo esgares destemperados em fila indiana, vermelhos de espuma e amarelos de sono e súbito pesadelo, em que “a força do público e o público à força”, tipo Salazar, vestem centenas de  alunos  com o mesmo amarelo doentio nas camisolas de colégio, formando as novas cruzadas do século para reconquistar os lugares de privilégio a que sempre se acomodaram, à custa do dinheiro dos contribuintes.   
Porque hoje está em Veneza o príncipe da arquitectura portuguesa, Álvaro Siza Vieira. Ele aí está como protagonista do Pavilhão de Portugal na Bienal daquela cidade. Aí está com a transparência  da luz oblíqua da sua obra que, multiforme nos tempos e lugares, revela-se tão perfeita  e una na verdade do  talento e no  olhar fiel ao real quotidiano da habitação social.  Apresenta-se com  o “Bairro da Bouça” (Porto), o “Bairro Schilderswij” (Haia), o “Campo de Marte”(Giudeca) e o edifício Bonjour Tristesse, em Schelsisches Tor (Berlim). Aí brilha o Homem, o Artista, severo na disciplina conceptual e sensível às sugestões, venham de onde vierem - o criador de braços abertos à totalidade da dimensão geo-antropológica, traduzida na arqui-arte do património construído!
Falo assim, porque ele também esteve aqui. Em Machico. Agosto de 1993. Por isso, ao vê-lo no Pavilhão de Portugal da Bienal de Veneza, transporto-o para a nossa cidade, primeira capitania da Madeira. Estou a vê-lo, debruçado sobre o Plano de Pormenor da zona ribeirinha de Machico, ouvindo (como um humilde aprendiz) as opiniões da vereação da CMM e de residentes locais, para depois manifestar a sua perspectiva de conjunto sobre a panorâmica da nossa baía. Era a altura em que os “batelões de cimento e betão”  com assento à mesa da Quinta Vigia  acusavam a autarquia de  “estagnação” e “terceiro mundo” só pelo facto de não permitirmos cá o assalto dos patos bravos à paisagem ímpar que pertencia, de direito, à população. Após três dias de  cuidada reflexão, partiu  para  uma região nos arredores de Paris, afim de fazer regressar à traça original o mercado da localidade,  que mãos vilãs tinham “destruído” com ampliações megalómanas e de mau gosto. Daí seguiria para Itália, onde lhe era pedido um plano de correcção de rede viária,  mal desviada por interesses privados que a transformaram num monumental aborto betuminoso.         
De tudo quanto nos disse, ficou-me este aviso, em forma de conselho amigo, como era seu timbre: “Presidente, trate-me esta zona com pinças. Mesmo que desagrade a terceiros”.
Cumpri. Hoje, porém, o que  confrange e até desespera é constatar que mãos daninhas, a soldo dos tais “batelões de cimento e betão”  fizeram rigorosamente o contrário: estação de águas residuais na entrada da baía; Forte-Promontório na falésia, abandonado, irreconhecível; estrangulamento do cais da cidade; o fórum-mastodonte feito muro agressor e encobridor do grande vale… Apetece mandar mensagem para Veneza: “Mestre Siza, não voltes a Machico, ao menos para poupar-te a esta enorme desilusão”.
         Trago assim esta aproximação de Machico a Veneza pela mão de Álvaro Siza, porque sabe bem recordar. E sobretudo porque reconforta  ver que ainda há vozes frescas que se levantam contra os ventos da “cidade velha” oriundos da Quinta,  priorizados pela cobiça de reeditar moendas de alcatrão populista na paisagem regional.

25.Mai.16
Martins Júnior

  

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