Hoje
vou deixar a Ásia em paz e vou rumar até
Veneza. Ao dizer “Ásia”, digo os calores do deserto, ontem calmos e hoje
turbulentos, digo esgares destemperados em fila indiana, vermelhos de espuma e
amarelos de sono e súbito pesadelo, em que “a força do público e o público à
força”, tipo Salazar, vestem centenas de
alunos com o mesmo amarelo
doentio nas camisolas de colégio, formando as novas cruzadas do século para reconquistar
os lugares de privilégio a que sempre se acomodaram, à custa do dinheiro dos
contribuintes.
Porque
hoje está em Veneza o príncipe da arquitectura portuguesa, Álvaro Siza Vieira.
Ele aí está como protagonista do Pavilhão
de Portugal na Bienal daquela cidade. Aí está com a transparência da luz oblíqua da sua obra que, multiforme nos
tempos e lugares, revela-se tão perfeita e una na verdade do talento e no olhar fiel ao real quotidiano da habitação
social. Apresenta-se com o “Bairro da Bouça” (Porto), o “Bairro
Schilderswij” (Haia), o “Campo de Marte”(Giudeca) e o edifício Bonjour Tristesse, em Schelsisches Tor
(Berlim). Aí brilha o Homem, o Artista, severo na disciplina conceptual e
sensível às sugestões, venham de onde vierem - o criador de braços abertos à
totalidade da dimensão geo-antropológica, traduzida na arqui-arte do património
construído!
Falo
assim, porque ele também esteve aqui. Em Machico. Agosto de 1993. Por isso, ao
vê-lo no Pavilhão de Portugal da
Bienal de Veneza, transporto-o para a nossa cidade, primeira capitania da
Madeira. Estou a vê-lo, debruçado sobre o Plano de Pormenor da zona ribeirinha
de Machico, ouvindo (como um humilde aprendiz) as opiniões da vereação da CMM e
de residentes locais, para depois manifestar a sua perspectiva de conjunto
sobre a panorâmica da nossa baía. Era a altura em que os “batelões de cimento e
betão” com assento à mesa da Quinta
Vigia acusavam a autarquia de “estagnação” e “terceiro mundo” só pelo facto
de não permitirmos cá o assalto dos patos bravos à paisagem ímpar que
pertencia, de direito, à população. Após três dias de cuidada reflexão, partiu para
uma região nos arredores de Paris, afim de fazer regressar à traça
original o mercado da localidade, que
mãos vilãs tinham “destruído” com ampliações megalómanas e de mau gosto. Daí seguiria
para Itália, onde lhe era pedido um plano de correcção de rede viária, mal desviada por interesses privados que a
transformaram num monumental aborto betuminoso.
De
tudo quanto nos disse, ficou-me este aviso, em forma de conselho amigo, como
era seu timbre: “Presidente, trate-me esta zona com pinças. Mesmo que desagrade
a terceiros”.
Cumpri.
Hoje, porém, o que confrange e até
desespera é constatar que mãos daninhas, a soldo dos tais “batelões de cimento
e betão” fizeram rigorosamente o contrário:
estação de águas residuais na entrada da baía; Forte-Promontório na falésia,
abandonado, irreconhecível; estrangulamento do cais da cidade; o fórum-mastodonte
feito muro agressor e encobridor do grande vale… Apetece mandar mensagem para
Veneza: “Mestre Siza, não voltes a Machico, ao menos para poupar-te a esta
enorme desilusão”.
Trago
assim esta aproximação de Machico a Veneza pela mão de Álvaro Siza, porque sabe
bem recordar. E sobretudo porque reconforta ver que ainda há vozes frescas que se levantam
contra os ventos da “cidade velha” oriundos da Quinta, priorizados pela cobiça de reeditar moendas
de alcatrão populista na paisagem regional.
25.Mai.16
Martins Júnior
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