O local
do “crime”
Hoje
vamos desopilar um pouco. Faz bem no intervalo destes jogos de “fortuna e azar”
– mais de azar que de fortuna – com que nos confrontamos nos noticiários da cada
hora. Faz bem ainda porque, já é toque antigo, o arco sempre tenso perde a
elasticidade. Então lá vai. E podia
começar como começam todas as estórias, sobretudo as do anedotário quotidiano; “Era
uma vez”…
Sim,
era uma vez… um ilhéu, quarentão, curioso do saber, que foi preso no Largo da
Universidade de Coimbra, aí pelos idos de 82 do século passado, “por causa” do
Papa. Qual o crime? – é a pergunta que salta logo da boca e dos olhos do
leitor.
Vou
contá-la em termos que desejaria tão breves quanto não vou conseguir. Para
satisfazer o apetite de quem pergunta, direi de imediato que esse homem ilhéu é
o subscritor destas linhas. Deslocara-me a Coimbra para fazer o exame de uma
das cadeiras, de Direito Internacional Público, suponho. Ao aproximar-me da “Porta
Férrea” (quem lá estudou pode recordá-la) deparei-me com toda uma azáfama na
construção de um enorme palco sob a velha torre: Intrigou-me a circunstância
anómala de avistar oficiais de Exército, talvez engenheiros coronéis, a dirigir
a delicada operação. Os galões dourados nos ombros dos ditos, faiscavam à luz
daquele meio-dia de maio solarengo. O palco, parcialmente alcatifado de um
vermelho quase arrogante, destinava-se à
recepção do então Papa João Paulo II, marcada para dia 14, na sequência da sua
visita a Portugal. Puxei de uma máquina fotográfica, daquelas de descartar, e
piquei uma meia-dúzia de vezes. Achei graça ver o altar pontifício,
arquitectado e dirigido sob a égide dos oficiais militares.
Passemos
ao II Acto da peça “herói-cómica”. Ao dobrar a “Porta Férrea” rumo a um
restaurante próximo, vejo um VWagen branco, de um ovo perfeito. “Está detido
para averiguações, acompanhe-nos à Esquadra”. Os dois homens, à civil, exibiram
a credencial da PSP. Podia replicar com o meu cartão de deputado regional. Mas
como nunca o usava, que remédio, lá tive de entrar na clara do ovo rolante,
enquanto o Bedel da Faculdade e outros elementos da secretaria, de passagem
para o almoço, tentavam explicar aos dois agentes quem eu era. Em vão. Fiquei
toda a tarde na Esquadra da cidade. Após as declarações da ordem, apercebi-me do embaraço
dos inquiridores, novas perguntas, telefonemas do gabinete para a Madeira,
mormente Assembleia Regional, mais tempo de espera, até que fizeram a gentileza
de me “mandar em liberdade”.
No
dia seguinte, a comunicação social do continente escorria, em largas parangonas, títulos como este:
“Padre madeirense detido por tentar assassinar o Papa”… Na diocese do Funchal,
os oficiantes e os oficiosos espojavam-se com o meu nome aos trambolhões. O
PSD/Machico completou a “gesta” publicitária em termos inenarráveis. E lá
fiquei eu com mais este “medalhão de guerra” no meu currículo público.
Mas,
perguntareis, havia proibição alguma de fotografar? Não. E então?… Então, eu
desvendo:
Na
solene celebração de Fátima, do dia 12 para dia 13, em pleno pontifical, um sacerdote
espanhol, o Padre Juan Fernandez Krohn, da congregação ulta-conservadora
liderada pelo Arcebispo Lefèbre, aproximou-se do Papa João Paulo II, empunhou
afrontosamente um punhal que trazia escondido sob a batina e apontou-o à figura
do Pontífice, sem que o pudesse atingir. Foi o pânico total. O caso abalou o
país e o estrangeiro.
Dito
isto, por aqui fica desfeito o enigma: de carambola com o eventual padre
assassino, na forma tentada, lá foi este curioso e incauto eclesiástico
madeirense atirado às feras da maledicência de rua, após uma detenção que tem
tanto de patético como de caricato.
O
porquê desta comédia a-talho-de-foice tem a ver com uma notícia fresca desta
semana, largamente difundida em Portugal e no estrangeiro: “Um diplomata
português foi detido em Bruxelas por estar a fotografar no seu tablet o edifício da Comissão Europeia”.
Ali até se compreende a actuação da rigorosa vigilância pública, dado o
ambiente de desconfiança recentemente criado pelos bombistas suicidas.
Mas
a principal conclusão – esta, mais séria – tem a ver com os muitos conteúdos
veiculados pela comunicação social dos nossos dias, apresentando como verdade
aquilo que não passa de falácia e embuste vil. O boato e a charlatanice
grosseira de certos jornais e centros de difusão áudio-visual só merecem o
desprezo, quando não o implacável anátema condenatório por parte do público
consumidor.
Acabou-se
o filme. Só não acabou a reminiscência que até hoje me diverte, todas vezes que
passo pelo “local do crime” no Largo da Faculdade Direito, sob a sombra tutelar
da velha torre da Academia.
07.Mai.16
Martins Júnior
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