Não
deixam de atravessar-me as narinas os tições
fumegantes de Pedrógão Grande nem o contraste das garridas marchas populares
do trio santoral de Junho pára de soar
aos meus ouvidos. Entretanto e porque hoje é domingo faço um ‘stop’ estratégico
para mergulhar noutras águas mais
profundas que vão desaguar no escrito do meu “Dia ímpar”, 22 de Junho. Como é
possível amar durante quase meio século sem nunca nos cansarmos da “coisa”
amada? … Por “coisa” considera-se aqui uma entidade ontológica, ou seja, a totalidade do
objecto que se ama , quer se trate de uma pessoa, paisagem, pátria, livro, ciência ou
arte. Com este cenário em fundo, estamos todos no mesmo palco. Toca-nos a
todos o grande enigma que aquela pergunta condensa.
Amar
não é dar. É dar-se.
Desta
diferença abissal emerge em plena luz que não é a prenda nem o anel nem o ramo de
flores nem o cheque de enxoval que define a promessa de amor, nem sequer a incondicional
entrega dos corpos em exaltação febril. Da mesma forma que não são o “pão e os
jogos” nem a auto-estrada nem o bloco de
apartamentos nem as pontes voadoras nem os sumptuosos monumentos que tornam inesgotável
o filão da “pátria” que se ama. Tudo
isso “se esfuma como a brancura da
espuma que se desmancha na areia”, assim escreveu o inspirado sambista
brasileiro Orlando Silva. Desengane-se, também, o Povo das juras e das
patrióticas doações dos que servem em baixelas de festas arraialescas os
tambores e os foguetes, o betão e o alcatrão que tresandam ao velho ‘mercúrio
cromo’ eleitoral. Um dia, cedo ou tarde, serão inevitavelmente “as palavras gastas” do nosso Eugénio de
Andrade.
O
amor que nunca se cansa da “coisa amada” não tem agência de câmbios mensuráveis.
É outro o seu trono – “ o invisível” de
Saint Exupéry – a mentalidade, a pedagogia, a sensibilidade, enfim, a nascente
intocável de onde promanam os rios do Ser ( e nunca os do ‘ter’), seja no
cidadão individual, na família ou na escola, seja na personalidade colectiva de um país, de
uma região ou de uma remota aldeia. Penetrar na central energética do outro e
ver crescer “cravos, rosas em botão” onde só havia cardos e espinhos, eis a “coisa
amada” que não morre e não nos deixa
morrer. Neste entendimento, a história
recente da ilha é a prova inapelável de que tudo terão dado aos ilhéus menos o
amor, a educação cívico-cultural e social perdurável nas gerações vindouras.
E
porque é Domingo, hoje percebi melhor o
alcance do veredicto do Mestre: “Não tenhais medo dos que matam o corpo e não
podem fazer mais nada. Temei, sim, os que podem matar a alma e o corpo”.
Contrariamente às interpretações da fatalidade justiceira dos deuses
julgadores, entendi, hoje com maior incidência cirúrgica, que “matar a alma”
significa truncar a mentalidade, prostituir
a sensibilidade, armadilhar o chão da
estrada do futuro – o pessoal e o social. E isso é o desamor poluído e poluente.
É a traição consumada, por mais sofisticada e aparatosa com que pretenda travestir-se. As igrejas têm
aqui uma inexorável ‘operação stop’ para questionar-se perante a dura
realidade, a de ontem, a de hoje e a de amanhã.
Do
aprofundamento relacional entre quem ama
e o seu ‘objecto’ dependerá a renovada juventude da “Coisa Amada”.
25.Jun.17
Martins Júnior
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