Consabido
é largamente que folclore é Povo, criatividade popular ou tudo quanto o Povo
transfigura, umas vezes sublimando e
outras desfigurando os factos e conteúdos. Desde o rimance à
novelística, desde a literatura à música, desde a gastronomia à superstição. E
é aqui mesmo, na esfera livre e desgarrada do fenómeno religioso, que o
folclore ganha asas, rompe a atmosfera tangível e penetra na estratosfera do
indizível. Mais concretamente, a inesgotável inspiração popular diluiu-se e,
depois, apoderou-se da entidade denominada “Espírito Santo” e deu-lhe forma,
figura, guarda-fato, orquestra, toda uma arquitectura superavitária, como o praeter ou sobrenatural
convidam a ser e em cujo vértice brilha uma alegria natural, desinibida e
difusiva, a que os comes-e-bebes emprestam corda e chama. Compulsando os manuais da história
eclesiástica, (em Portugal, a obra de Fortunato de Almeida, por ex.) constatamos
que, à pala do “Espírito Santo”, o Povo foi desenvolvendo uma teia confusa,
mistela do sagrado e do profano e abusos
tais que a Igreja institucional teve de intervir, pondo cobro a algumas
tradições desviantes e, por vezes, sacrílegas em relação ao objecto essencial
do culto em causa.
A
Madeira, desde o tempo do Zarco, abriu-se à nova vaga vinda de Portugal
Continental, iniciada precisamente pela Rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis,
com a construção de um templo em Alenquer dedicado ao “Espírito Santo”. Em
diversos pontos da ilha, inclusive no Porto Santo, a devoção ganhou templos
votivos de grande influência no devocionário popular madeirense. Hoje, ainda
são públicas e notórias as romarias, as saloias, as violas e os cantares ao “Divino”,
nas divertidas visitas domésticas de índole privativa (casa-a-casa) bem recheadas
e melhor regadas, terminando tudo com a ‘conquista do troféu’, ou seja, as
ofertas pecuniárias da praxe. Não há muito tempo, um conhecido especialista em
folclore, testemunha ocular destes eventos, dizia na nossa TV que muito lhe “custava
ver famílias paupérrimas com três envelopes em cima da mesa: um para a igreja,
outro para o padre e outro para a festa do “Espírito Santo”. Enfim, escuso-me de comentar, neste momento,
semelhantes práticas.
Pela
parte que toca à localidade onde me situo, esclareço que a alegria do Espírito
de Deus, transmissiva e saudável, segue outro ritual, susceptível de apreciação
crítica, como qualquer outro. Juntam-se os dois “sítios” vizinhos, ou seja,
contíguos territorialmente, celebramos a assembleia eucarística em comunidade
(conforme a narrativa do Livro dos Actos dos Apóstolos, cap.1º), pela meditação
procuramos alcançar a mensagem dinâmica do Espírito em nós e, complementando
todo este envolvimento, há festa no campo, as pessoas trazem frutas, produtos
da terra, cântaros de flores, petiscos de gaiado seco, bacalhau e similares
atados à garrafa de vinho, bolos e pães confeccionados
em casa, tudo é leiloado num espectáculo cheio de humor e música ao vivo. O mais significativo e até emocionante é que a
população partilha em comum toda a
ementa leiloada. A nota dominante nas três celebrações campais (consoante os “sítios”
) é a alegria, não a exclusivista, mas a comunitária que mobiliza e valoriza
aqueles encontros em que os jovens também são parte integrante com os
instrumentos da tuna.
Passando
adiante neste apontamento de reportagem, o que importa relevar e nunca esquecer
é que o Espírito manifesta-se em tudo quanto existe: em nós, prioritariamente, na
terra, no frutificar das sementes pela mão do lavrador, nos operários fabris,
no trabalho intelectual, enfim, em tudo o que levanta o ânimo dos povos. Por isso,
no hino litúrgico que hoje e amanhã as igrejas cantarão, lá está o princípio
activo dinamizador da vida: “Vinde, Espírito de Deus, vinde renovar a face da Terra”.
Em qualquer lugar, por mais inóspito que seja, e lá houver Vida a germinar no coração da pessoa e no seio da terra ou do
mar ou do ar, aí estará o Espírito autêntico que renova o mundo e a sociedade.
Foi
o que vivi hoje (permitam-me este desabafo) na longínqua freguesia de Canas de Senhorim, distrito de Viseu, no
convívio anual da Companhia que o meu amigo e conterrâneo Capitão Miliciano Dr.
Alexandre Aveiro comandou em terras de
Moçambique, nessa malfadada guerra colonial: as famílias, filhos e netos, até um jovem casal que propositadamente veio da
Holanda para juntar-se ao pai,
ex-militar, enfim, um abraço solidário entre os que sobreviveram e uma saudade
imensa por aqueles que a morte já não deixou marcar presença. Da celebração
passou-se à mesa do restaurante na Quinta do Boiça, onde se viveram momentos de entusiasmo fraterno e,
com a ementa, continuámos a servir-nos as iguarias do pensamento crítico
positivo sobre temas do maior interesse espiritual e social.
Hoje,
foi Dia de Pentecostes, a aura do Espírito, em Canas de Senhorim. Amanhã,
sê-lo-á na nossa comunidade da Ribeira Seca. E continuará sempre em cada qual,
quem no queira – seja individual e intimamente, seja solidária e colectivamente – desde que “os
ossos se reanimem” (Profeta Ezequiel)
e queiramos renovar a face da terra!
03.Jun.17
Martins Júnior
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