Venho
hoje decifrar a “SERENATA À CHUVA”, que anteontem
deixei neste mesmo lugar. Porque nem sempre a linguagem elíptica do poema
traduz a verdade cirúrgica, imersa na metáfora, permitam-me este regresso à
chuva na prosa dos dias. Um regresso que tem cinquenta e mais anos, neste
preciso 25 de Novembro.
Ao
ler em toda a imprensa portuguesa a
evocação desta noite de 25 para 26 do ano de 1967 e da tragédia provocada pela
tremenda aluvião que desabou sobre Lisboa,
censurei-me a mim próprio pelo completo
alheamento da catástrofe, enquanto na metrópole (assim se dizia então) centenas
de vítimas eram arrastadas, afogadas, no turbilhão das águas diluvianas. Foi há 50 anos. Estava
eu e estavam milhares de homens noutras torrentes, algumas ensopadas em sangue,
na guerra colonial. A nenhum de nós chegou a notícia da tragédia de Lisboa. E
concluo: o poderoso sufoco da ‘Censura’ salazarista que escondia maquiavelicamente
a informação – a de cá aos de lá. E a de lá aos de cá!
Estranho
paradoxo! Há 50 anos, os portugueses gritavam esmagados pelo fragor das águas
em catadupa. Hoje, gritam os portugueses, os campos, as barragens, os animais
pela falta delas! “Vejam agora os sábios
na Escritura que segredos são estes de Natura”, exclamaria hoje o nosso épico. (V,22)
Enquanto o cidadão mais avisado aponta o dedo
também ao abuso humano da atmosfera e à passividade de entidades públicas e privadas
face às alterações climatéricas, regista-se o esforço ingente de quem tenta
matar a sede às populações, recorrendo ao transporte ininterrupto de água em
autotanques. Enquanto isso e após meses
de extática contemplação, surge a inspiração do alto, ditada pelo báculo cardinalício do Patriarcado de
Lisboa: REZAR PELA CHUVA. Mais abaixo, no Alentejo profundo, um grupo de
crentes organiza a procissão de Beja, impetrando dos céus a bênção da cobiçada
chuva, maná deste tempo de seca severa. Pelos vistos, a prece de Beja parece
ter sido ouvida mais depressa que a de Lisboa. Só agora é que chegaram alguns
pingos das alturas e com esta bizarra contradição: os do norte (que não
rezaram) tiveram direito a uma ração mais vantajosa que os do sul, pois a estes
só lhes coube o suficiente para continuarem secos os campos.
Sabendo
que esta minha reflexão será objecto de críticas e duros ataques, entendo usar o
direito de expressão para limpar o ar que respiramos, identificando espessas nuvens
de superstição e obscurantismo, ao mesmo tempo que sejam postas no seu devido
assento as realidades, tanto as terrestres como as extraterrestres. Por
respeito aos homens e aos deuses.
E
por mais devoto que pareça, não deixa de ser um abuso chamar à querela quem
nada tem a ver com ela. Além de que demonstra um perigoso exercício de inércia intelectual
persistir em práticas obsoletas, porque baseadas na mais grassa ignorância
científica e religiosa. Não temos o direito de considerar Deus como um ‘levadeiro’
de serviço ao domicílio, da mesma forma que outros querem tê-lo como ‘bombeiro’
na hora ou ‘artilheiro’ nas suas guerras domésticas. Era essa a concepção do
povo judaico do Velho Testamento, contrária à mensagem de Cristo. Quanto à
ordenação planetária e à Natureza, Deus concedeu-lhes autonomia de movimentos,
outorgando ao homem este solene mandato: “Dominai a Terra” (Génesis, I,28).
Quem
leu a entrevista do Cardeal Vingt-Trois, arcebispo de Paris ao jornal Le Figaro (que comentei no blog de
13/11/17) terá reconhecidamente fixado o seu pensamento: “Pela minha educação e
pela minha história pessoal, não atribuo a Deus os acontecimentos do mundo. A
Criação foi uma ‘aventura’ que Deus entregou à sabedoria do homem”. Nada mais
sábio e clarividente! Afigura-se um grave atentado a Deus e ao homem
interpretar o mundo e as suas rotações com critérios medievais, puramente
empíricos, tal como os marinheiros das naus ‘viam’ nos relâmpagos o “Fogo de Santelmo”, a
intervenção de São Pedro Gonçalves Telmo, padroeiro dos homens do mar. (Lus. Canto V,18). Mais grave e criminoso
é iludir o povo a quem se subtraiu o direito à cultura e à informação histórica.
Até
onde poderia levar-nos esta reflexão?!... Basta pensar na tragédia do Monte, em
15 de Agosto pp.. Não há aí quem tenha a coragem de interpretar os sinais dos
tempos e as encruzilhadas da fé?! É uma
exigência irrenunciável impedir que se exponham ao ridículo realidades
supremas, sobretudo em relação à crença religiosa. Não se chame Deus a
responder onde Ele não é chamado. Haja respeito!
Sei
do que falo. Experimentei-o, ao vivo. Também há cinquenta e mais anos, em 1964,
no Porto Santo. Não choveu durante oito meses. Em Março, o trigo mal saía da
terra, à míngua de água. Três dias e três noites fizemos peregrinação à capela
de São Pedro. E ao terceiro dia, a terra ressuscitou com as chuvas copiosas
caídas das nuvens. “Milagre” – diziam-me as pessoas, de braços abertos. Mas, no
meu íntimo, pesava-me esta incógnita: “Será Deus tão sádico que nos obrigue a
sofrer tanto e a ajoelhar rudemente para
nos socorrer?... A resposta é NÃO!
Termino
esta reflexão (mas não lhe fecho o percurso) com um excerto do livro do Padre
José Luís Rodrigues – “O QUE A FÉ NÃO
DEVE SER”, – no capítulo “A Fé não é um guarda-chuva”, publicado em 2013:
“Muita da dor provocada pelas tragédias
resultam da irresponsabilidade, da incúria, dos desmandos, dos abusos, da
violação dos espaços e das regras das forças da natureza. Então, temos a
factura que a natureza nos envia carregada com valores elevados de destruição,
desolação, sofrimento e morte”.
Perfeito!
25,Nov.17
Martins Júnior
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