Nada melhor
que uma antítese para consolidar uma síntese. É, por isso, um privilégio
inestimável quando a mesma paisagem, a mesma instituição ou o mesmo problema se
nos apresentam do avesso e do direito, de um ângulo proposto e do seu oposto,
ou seja, quando analisamos a realidade nos seus múltiplos contornos.
Esse
prazer-valor acrescentado foi-me dado viver em dois momentos marcantes deste
fim de dia, 21 de Novembro. O primeiro, na Aula Magna da Universidade
Clássica de Lisboa e o segundo, na Associação José Afonso, também na capital.
No primeiro
e fazendo jus ao cenário onde tudo ocorreu, a cerimónia brilhou pela magnitude
do ambiente, pelo auditório, pelas personalidades intervenientes em palco. Foi
a apresentação oficial do "PORTUGAL CATÓLICO", um requintado volume
de 800 páginas, edição do "Círculo de Leitores", patrocinado pelo
dono do 'Pingo Doce' ali presente e repetidamente incensado por todos os
oradores e apresentadores. O recinto tinha tudo de imponente, academicamente
enfático, as instituições (de toda a sorte, políticas, culturais,
confessionais) rigorosamente representadas e assentadas em lugares
segregados, os discursos vários, tudo sobredourado pelas primorosas
actuações de Cuca Roseta, Rão Kiao e Teresa Salgueiro. A coroar o magno evento
na Magna Aula subiram ao palco os também magníficos Sua Eminência o Senhor
Cardeal Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa e Sua Excelência o Senhor Presidente
da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Foi uma esplendorosa entronização da
Igreja Católica numa universidade laica, os seus valores, os monumentos
históricos, os rituais pontificais e processionais projectados nos écrãs, os
mais proeminentes titulares clericais, enfim, os contributos
eclesiásticos para a construção deste Portugal de nove séculos. Monumental a
obra e não menos o espectáculo de lançamento público.
Mais
adiante, ao fim da Rua de São Bento, de outros mundos se falava, embora radicados
no mesmo tronco institucional, a Igreja. Era uma homenagem a um grande obreiro
daquela casa, o falecido Alípio de Freitas. A casa é a sede da AJA - Associação
José Afonso, cujo espírito pairava naquela sala, onde amigos comuns
confraternizavam sob a memória de Alípio Freitas, para quem o mesmo Zeca Afonso
compusera, em 1981, uma das mais expressivas baladas. Homens e mulheres, jovens
e adultos, do continente e ilhas, cercados e unidos pelo cículo luminoso da
liberdade, evocaram o grande amigo e lutador Alípio. Tudo muito singelo,
autêntico, libertador. E comovente: ali presente a viuva Guadalupe e sua filha
Luanda. Mais emocionante foi ouvir a belíssima voz desta jovem,
acompanhada pelo exímio 'baixista' Norton, seu marido. Sobretudo quando cantou
a balada que Zeca Afonso dedicou ao pai Alípio. A encerrar este encontro,
modesto na forma, mas enorme no conteúdo, Francisco Fanhais, actual presidente
da AJA e a celebrar 50 anos de percurso musical, deixou-nos a grande
mensagem sonora da sua "Utopia".
Que terá ver
este segundo 'acto' com o primeiro, da Aula Magna? Por outras palavras, que
tangência têm os dois 'actos' com a instituição Igreja?
É o que
importa esclarecer e é também a razão de ser deste escrito. A coincidência que
abrange os dois momentos está aqui: ALÍPIO DE FREITAS foi padre da Igreja
Católica, ordenado em Bragança, onde exerceu o múnus de pároco e director da
Escola de Artes e Ofícios. Tocado pelo autêntico espírito missionário, emigra
para o Nordeste brasileiro. Lecciona na Universidade de São Luis do Maranhão,
mas era mais forte o apelo pelo campesinato explorado. Fundou a Associação dos
Trabalhadores Agrícolas e associou-se às Ligas Camponesas. A sua acção em prol
das populações injustiçadas estendeu-se ao Rio de Janeiro, em plena ditadura militar.
Foi preso e torturado durante vários anos, como relata o seu livro
"Resistir É Preciso". Entretanto, fustigado pela justiça do
Exército e pela incompreensão das hierarquias eclesiásticas, abandona o
sacerdócio para dedicar-se mais intensivamente à sua missão de líder social. É
tremendamente assustador o seu relato quando foi preso com a esposa e a filha,
de um ano de idade - a mesma jovem que hoje cantou na casa da AJA!..
Moçambique,
Lisboa, RTP, Universidade Lusófona, foram outras das várias instituições onde
exerceu funções, após o 25 de Abril de 1974. Um herói que depôs as armas aos 80 anos de idade! E para
sempre ficou no grande pódio dos vencedores da vida: o coração e a mente dos
amigos que hoje se reuniram em sua memória.
Deixo a quem
me lê o cotejo dos dois acontecimentos da tarde de hoje. Lá em cima, o
espectáculo, a entronização. o clangor triunfalista da Igreja
institucional. Cá em baixo, a convicção, a autenticidade, a consonância
fraterna e mobilizadora de Alguém que incarnou a Igreja vivencial, exclusivamente
comprometida com as raízes do humanismo evangélico. Para mim, a humilde
'mansão' de Zeca Afonso em dia de ALÍPIO FREITAS excedeu em magnitude essencial
a majestática Aula Magna do "Portugal Católico".
21.Nov.17
Martins Júnior
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