Atravesso
o paralelo “29” e piso o solo aventurado do dia último do mês de Novembro. Na
mesma viagem levo comigo 244 anos de história. Porque venho saudar a “Pátria do
Autor” e a “ extensa ribeira preguiçosa”, em cujas margens ele viu “a primeira
luz do sol sereno em pobre, sim, mas paternal morada”.
Todo o bom patriota, nascido em
Machico, conhece de cor – e de coração – esta toada encomiástica e, ao mesmo tempo, plangente que Francisco Álvares de Nóbrega dedicou ao
seu torrão natal. É dele que me ocupo nesta noite, da sua memória e, sobretudo, do seu ‘lugar’ nos anais da freguesia, da ilha
e do próprio país. Quando me refiro aos anais históricos de Machico, da Madeira
e de todo o Portugal, não evoco a letra do texto escrito, porque a
personalidade do “Nosso Camões” ou “Camões Pequeno” não coube nas páginas
impressas dos arquivos. Durante quase dois séculos mãos daninhas
encarregaram-se de apagar o seu nome. Nem um simples registo fotográfico nos
ficou, para que, ao menos, pudéssemos
vislumbrar no seu rosto o brilho incandescente que trazia no peito.
Dessa chama interior brotaram as
cintilações dos seus sonetos e, mais do que isso, firmou-se a marca distintiva
da época em que viveu. À produção literária que chegou até nós, a “EFAN-
Estudos Nobricenses” tem dedicado diversas iniciativas, publicações, saraus
proclamatórios e representações dramatúrgicas, ao longo dos anos.
No entanto, importa-me sobremaneira, nesta
data, detectar e relevar o impressivo lugar que Francisco Álvares de Nóbrega
deixou na História. Tanto mais que foram exactamente esse ‘lugar e a sua
intervenção que motivaram o esquecimento a que foi votado pelos sucessivos regimes que governaram o país e, por consequência,
a ilha. Não abundam referências precisas
ao conspecto sócio-político insular, durante três séculos e meio após o
achamento daquela “que do muito arvoredo
assim se chama”. Muito espólio se perdeu na voragem dos incêndios e das
aluviões. Entretanto, chegando aos finais do século XVIII, princípios do século
XIX, um padrão luminoso se acende no oceano da semi-obscuridade dos
acontecimentos: é um jovem, nascido em Machico no dia 30 de Novembro de 1773,
de nome Francisco André Álvares de Nóbrega. Neste ligeiro apontamento (que
terá, a seu tempo, novos desenvolvimentos) pretendo chamar a atenção e sensibilizar
a opinião pública para a real caracterização de uma época trepidante, como foi
a da transição dos ´séculos XVIII-XIX. Nesse canal tumultuoso mas brilhante
nasceu, viveu e finou-se o “Nosso Camões”. A sua vida e a sua obra corporizam a síntese e o símbolo vivo das
contradições entre o conservadorismo mais repressivo e o clamor vitorioso dos
ideais da Revolução Francesa. A inquisição, de um lado, e a Maçonaria, de
outro, digladiavam-se encarniçadamente. Era o estertor do poder absoluto face
aos ventos da liberdade que sopravam de Paris.
Francisco
Álvares de Nóbrega incarna esse turbilhão cultural, religioso e, por arrasto,
social e político. É por isso que a sua poesia não é inócua nem, muito menos,
romântica ou licorosa. Ela reflecte o país e as instituições em aceso litígio
público, de que resultaram vítimas indefesas, entre as quais, o próprio poeta
que acabou por sofrer os “ferros sórdidos” da cadeia do Limoeiro, em Lisboa, às
ordens da “Santa Inquisição”. Estudar e dar a conhecer Francisco Álvares de
Nóbrega é abrir a enciclopédia de uma das fases mais incisivas da ilha e do país.
Por
isso, o meu regozijo e o meu apelo.
Sabendo que as ‘forças vivas’ de Machico – à cabeça, a Câmara Municipal e a
Junta de Freguesia – preparam um expressivo programa dos “600 Anos do
Descobrimento”, recomendo o estudo acurado de um dos capítulos mais sugestivos
do nosso passado e a inclusão de
Francisco Álvares de Nóbrega como protótipo emblemático dessa mesma época.
Mais
que uma homenagem ou deferência académica, é um dever imperativo que impende
aos ombros da nossa geração.
29.Nov.17
Martins Júnior
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