quarta-feira, 27 de abril de 2022

O ESQUECIMENTO É UMA ARMA

                                                                          


“Morrer é deixar de ser visto” . À expressão do grande poeta, eu aporia estoutra, validada como sinónima; Morrer é ser (ficar) esquecido. Com o esquecimento vem todo o atrelado da falta de memória, do corte de raízes, da deturpação dos factos, do vírus da ingratidão, numa palavra, vem a traição do “alzheimer” social. O esquecimento, seja como causa, seja como efeito, quando injectado num povo, tem consequências de alcance incalculável.  Um povo sem memória – pior que o indivíduo – não sabe de onde vem nem sabe para onde vai.

         Serve este longo preâmbulo para monitorizar uma breve constatação, breve na síntese, mas intensa no conteúdo: A constatação da caminhada descendente que o povo português (onde incluo com maior incidência o povo madeirense) está a ensaiar, de degrau em degrau e sem dar por isso, nos meandros, curvas e contra-curvas do quotidiano sombrio, de modo a esquecer a génese do Portugal renascido das cinzas do fascismo. É o resvalar suave para o “alzheimar” sócio-político mais profundo. É esquecer as raízes deste tronco em flor, cortar a seiva deste tronco novo que é Abril em Portugal.

Parece que, ao aproximar-se o cinquentenário da Revolução dos Cravos, agitam-se os apagadores da história para empanar a data da nova Restauração do País, adocicando e deturpando as origens, ou – muito mais grave – relegando o Dia Limpo para o espólio das fardas velhas. Há, sem sombra de dúvida, as toupeiras do antigo regime a roer os dedos com que subimos a encosta e há as enguias invertebradas do saudosismo salazarista a serpentear por entre os seixos da nossa praia. Haverá, porventura, outra tribo que esquece por esquecer.

Vigilância é o que faz falta – já avisava Zeca Afonso. Porque tenho o direito de não ficar cego, apático, insensível ao mundo em que vivo – o direito de não ficar esquecido – permito-me destacar dois momentos em que, durante o 25 de Abril de 2022, foram servidas pílulas sonolentas, mais precisamente, estupefacientes bem empacotados para anestesiar o cidadão incauto.

Muito clara e assertivamente: o programa na RTP/M, em que o mais incontrolado inimigo do “25 de Abril” aparece a tecer loas e cantares à Revolução dos Cravos. Homens e mulheres de hoje, jovens e crianças não sabem quem proibiu a Assembleia Regional de festejar o “25 de Abril”. Precisamente, o desfigurado que agora canta Abril, cujo intento bélico sempre foi abater os fautores da libertação do povo.

O outro momento foi delicioso: o matutino funchalense, decano da Imprensa, aproveita a mesma data para viajar até ao ano de 1936, a Revolta do Leite. Especiosa inspiração leitoa: esquecer Abril ou, envergonhadamente, dar-lhe um cheirinho a cravo, deslizando-o para o roda-pé da página.

Perante a onda pré-elaborada nas oficinas do alzheimer” político-publicitário, tenho o direito de interpretar e dizer “Não”!!!

Abril, de onde nasceu a Autonomia, pertence originariamente à Constituição da República Portuguesa, pela mão dos deputados constituintes. Por mais embates, sucessos e contratempos da sua marcha, é um imperativo constitucional, social e individual, segurar a Liberdade e a Autonomia, erguer cada vez mais alto os Cravos de Abril!

Se os nossos maiores lutaram por construir Portugal de Abril, compete-nos lutar contra as armas do esquecimento que pretendem rasurar Abril!

27.Abr.22

Martins Júnior

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