quarta-feira, 17 de agosto de 2022

O ELOGIO DAS PERIFERIAS… E a todos um xi-coração!

                                                                               


Às amigas e amigos que tiveram a amabilidade de enviar, de várias formas, saudações aniversárias pelas seis décadas deste longo  percurso sócio-espiritual e cultural que anteontem concluí, aqui deixo e retribuo para as suas vidas o mesmo calor intimista com que as recebi.

         E porque nalgumas delas vinha colado o desafio de fixar por escrito algumas dessas travessias nos mares navegados, aqui vai um breve registo, talvez o maior desta sexagenária trajectória: o meu agradecimento à Instituição Eclesiástica por me ter entregue em 15 de Agosto de 1962  esta bússola dos ventos, como a indicar-me o meu sonho e a minha sina: “Nascido para as Periferias”.

         E assim se cumpriu um destino.

         Por ter proferido a, então denominada, ‘Oração de Sapiência’ no púlpito da Sé Catedral do Funchal, por ocasião do soleníssimo Te-Deum do patriotíssimo 1º de Dezembro, Dia da Restauração – onde afirmei que “os maiores criminosos não estão nas cadeias” e, de seguida, que “o nosso Jesus não precisa de adoradores que venham ajoelhar-se em fofas almofadas vermelhas” – por isto e só por isto, recebi, no fim do ano lectivo, guia de marcha para o Porto Santo. O ‘azar’ – ou a ‘sorte’ – foi que, na imponente cerimónia,  quem tinha a seus pés almofadas vermelhas eram o governador civil e o governador militar

         A solidão, os extensos campos de trigo e uvas que se confundiam com o areal da praia, aí aprendi a olhar a vastidão da vida e da história humana. Senti-me ao lado de Charles de Foucauld a mergulhar no mistério do ser aqui-e-agora, relevando tão-só o essencial contra os fogos fátuos do superficial que tem tanto de espectacular como de efémero. E como tal, aprendi a ganhar a autonomia de pensamento e acção, na interpretação evangélica e nos rituais da liturgia. A periferia fez-me crescer e, ao mesmo tempo, reconhecer a fragilidade de viver. Ganhei caule e tronco existenciais.

         A ‘rosa-dos-ventos’ meteu-me dentro do velho ‘Nissas’ e lá fomos, em 1967, mais de dois mil homens para o extremo norte de Moçambique, a periferia que cheirava ao verde do capim e ao sangue da juventude. Aí aprendi a injustiça das armas feitas da ganância criminosa dos colonizadores sem escrúpulos. Vi também, no mesmo cômputo, a humilhação misturada com a raiva ancestral dos povos colonizados. Aí, descobri a tremenda falácia dogmática que “fora da Igreja não há salvação”. Vi gente boa, honesta, sedentas de um Mundo Melhor. Gente negra por fora, branca por dentro. Aí, voltei a ouvir o eco de Pedro Apóstolo: “Em qualquer nação ou em qualquer lugarejo, quem pratica o que é justo é aceite por Deus”.  Aí, descri da Igreja monárquica, absolutista e passei a crer e adorar os muitos mártires que ali deixaram o corpo em missões de paz e progresso.

         Longe da periferia dos palácios-basílicas, das embaixadas-nunciaturas, das centralidades salomónicas em que os poderes ditos sacros sentam-se à mesa dos poderes do deus Mammona, do capital e da política, ali na periferia nua e crua aprendi a ver o autêntico Jesus crucificado e, como o Padre António Vieira no nordeste brasileiro, aprendi a rejeitar dos templos as falsas imagens mortas “que não padecem nem sofrem”. Repudiei a hipocrisia farisaica das roupagens de ouro e  púrpura sacramentais e toquei o choro abafado de crianças e mulheres, adultos e velhos para quem viver é ficar amarrado à sala de espera da morte. A periferia abriu-me caminho de andar com o verdadeiro Jesus. A periferia fez-me servir o Povo, não a Instituição.

         Regressado à minha terra e, por mais inverosímil que pareça,  regressei de novo à periferia, uma ‘segunda África’ – Ribeira Seca, sem pingo de água potável, sem estrada, sem luz. Mas com o capital mais precioso do mundo: o seu Povo. Em 1977, mais um anátema de proscrito: o libelo condenatório da ‘suspensão a divinis’. Sem processo, sem crime, sem direito ao contraditório. Entrei na ultra-periferia. E descobri em plena luz o que já antes vinha desvendando: Quanto mais longe do absolutismo hierárquico da Igreja Institucional, mais perto de Jesus de Nazaré, o Libertador.  

Daí em diante, valeu tudo: Em 1985, a ocupação selvática da igreja, por 70 efectivos policiais, sem mandado judicial, à revelia da lei.  Em 2010, a expulsão da Imagem Peregrina: a diocese não a deixou entrar nem no adro nem na igreja.

Agradeço todos quantos se irmanaram comigo na reta final da sexagésima estação.

À Instituição agradeço a vocação periférica com que me brindou a mim, durante 60 anos. A mim  e à Ribeira Seca durante 45 anos. A força centrífuga da periferia transformou-se na força centrípeta de Jesus, o Nazareno.

Bendita, Iluminante  e Renovadora Periferia!

“E, no entanto, a terra move-se”.

E, no entanto, a Vida continua!

 

17.Ago.22

Martins Júnior

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