Às
amigas e amigos que tiveram a amabilidade de enviar, de várias formas,
saudações aniversárias pelas seis décadas deste longo percurso sócio-espiritual e cultural que
anteontem concluí, aqui deixo e retribuo para as suas vidas o mesmo calor intimista
com que as recebi.
E porque nalgumas delas vinha colado o
desafio de fixar por escrito algumas dessas travessias nos mares navegados,
aqui vai um breve registo, talvez o maior desta sexagenária trajectória: o meu
agradecimento à Instituição Eclesiástica por me ter entregue em 15 de Agosto de
1962 esta bússola dos ventos, como a
indicar-me o meu sonho e a minha sina: “Nascido para as Periferias”.
E assim se cumpriu um destino.
Por ter proferido a, então denominada, ‘Oração
de Sapiência’ no púlpito da Sé Catedral do Funchal, por ocasião do soleníssimo Te-Deum do patriotíssimo 1º de Dezembro, Dia da Restauração – onde
afirmei que “os maiores criminosos não estão nas cadeias” e, de seguida, que “o
nosso Jesus não precisa de adoradores que venham ajoelhar-se em fofas almofadas
vermelhas” – por isto e só por isto, recebi, no fim do ano lectivo, guia de
marcha para o Porto Santo. O ‘azar’ – ou a ‘sorte’ – foi que, na imponente
cerimónia, quem tinha a seus pés
almofadas vermelhas eram o governador civil e o governador militar
A solidão, os extensos campos de trigo
e uvas que se confundiam com o areal da praia, aí aprendi a olhar a vastidão da
vida e da história humana. Senti-me ao lado de Charles de Foucauld a mergulhar
no mistério do ser aqui-e-agora, relevando tão-só o essencial contra os fogos
fátuos do superficial que tem tanto de espectacular como de efémero. E como
tal, aprendi a ganhar a autonomia de pensamento e acção, na interpretação
evangélica e nos rituais da liturgia. A periferia fez-me crescer e, ao mesmo
tempo, reconhecer a fragilidade de viver. Ganhei caule e tronco existenciais.
A ‘rosa-dos-ventos’ meteu-me dentro do
velho ‘Nissas’ e lá fomos, em 1967, mais de dois mil homens para o extremo
norte de Moçambique, a periferia que cheirava ao verde do capim e ao sangue da
juventude. Aí aprendi a injustiça das armas feitas da ganância criminosa dos
colonizadores sem escrúpulos. Vi também, no mesmo cômputo, a humilhação misturada
com a raiva ancestral dos povos colonizados. Aí, descobri a tremenda falácia
dogmática que “fora da Igreja não há salvação”. Vi gente boa, honesta, sedentas
de um Mundo Melhor. Gente negra por fora, branca por dentro. Aí, voltei a ouvir
o eco de Pedro Apóstolo: “Em qualquer nação ou em qualquer lugarejo, quem
pratica o que é justo é aceite por Deus”.
Aí, descri da Igreja monárquica, absolutista e passei a crer e adorar os
muitos mártires que ali deixaram o corpo em missões de paz e progresso.
Longe da periferia dos
palácios-basílicas, das embaixadas-nunciaturas, das centralidades salomónicas
em que os poderes ditos sacros sentam-se à mesa dos poderes do deus Mammona, do capital e da política, ali
na periferia nua e crua aprendi a ver o autêntico Jesus crucificado e, como o
Padre António Vieira no nordeste brasileiro, aprendi a rejeitar dos templos as falsas
imagens mortas “que não padecem nem sofrem”. Repudiei a hipocrisia farisaica
das roupagens de ouro e púrpura sacramentais
e toquei o choro abafado de crianças e mulheres, adultos e velhos para quem
viver é ficar amarrado à sala de espera da morte. A periferia abriu-me caminho
de andar com o verdadeiro Jesus. A periferia fez-me servir o Povo, não a
Instituição.
Regressado à minha terra e, por mais
inverosímil que pareça, regressei de
novo à periferia, uma ‘segunda África’ – Ribeira Seca, sem pingo de água
potável, sem estrada, sem luz. Mas com o capital mais precioso do mundo: o seu
Povo. Em 1977, mais um anátema de proscrito: o libelo condenatório da ‘suspensão
a divinis’. Sem processo, sem crime, sem direito ao contraditório. Entrei na ultra-periferia. E descobri em
plena luz o que já antes vinha desvendando: Quanto mais longe do absolutismo
hierárquico da Igreja Institucional, mais perto de Jesus de Nazaré, o
Libertador.
Daí
em diante, valeu tudo: Em 1985, a ocupação selvática da igreja, por 70 efectivos
policiais, sem mandado judicial, à revelia da lei. Em 2010, a expulsão da Imagem Peregrina: a
diocese não a deixou entrar nem no adro nem na igreja.
Agradeço
todos quantos se irmanaram comigo na reta final da sexagésima estação.
À
Instituição agradeço a vocação periférica com que me brindou a mim, durante 60
anos. A mim e à Ribeira Seca durante 45
anos. A força centrífuga da periferia transformou-se na força centrípeta de
Jesus, o Nazareno.
Bendita,
Iluminante e Renovadora Periferia!
“E,
no entanto, a terra move-se”.
E,
no entanto, a Vida continua!
17.Ago.22
Martins Júnior
"Eppure si muove!"
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