Ao
partir de Odessa o barco primeiro carregado de milho, António Guterres,
Secretário Geral da ONU, teve um invulgar rasgo de eloquência e duro realismo quando
afirmou: “Aquele barco leva dois carregamentos, qual deles o maior: o Milho e a
Esperança”.
Um mês antes, o Courrier International citava o articulista do Washington Post e estampava
na capa da revista, com um expressivo trigal em fundo, esmagado pelos tanques russos: “L’ arme du blé” – a Arma do trigo.
Paradoxal e tremenda radiografia da sociedade
humana: de um lado, o Trigo, o rei dos cereais, transformado em arma de guerra,
retida nos enormes paióis agrícolas. Em vez de pão para a boca dá munições para
a morte. Por outro lado, o Milho, o sustento dos famintos e dos animais domésticos,
esse é que alimenta uma réstia de Esperança no meio da tormenta.
A
isto chegámos, após séculos de evolução e crescimento. As classes dominantes,
detentoras do capital e dos meios de produção, organizam-se em fortalezas de
bronze (nos bancos, nas empresas, nos paraísos fiscais) prontas a disparar ao
menor sinal de alarme social. Nos antípodas da sociedade, os pobres, os operários, os refugiados, enfim,
o proletariado, mesmo atirado para a vala anónima da plebe, é quem projecta ainda
um halo de Esperança nos dias futuros.
Em tempo de verão relaxante e
restaurador de saúde e optimismo, quase se nos repugna debruçar o olhar sobre
este charco de batráquios em terra seca. Mas é o que aí está patente, nu e
despudorado diante de todos nós. A sanha cega e surda de um homem só contra
todos: se não consegue atingi-los com os mísseis supersónicos, então estrangula-os
com o garrote da fome!
Não
restam dúvidas de que voltámos à barbárie da selva, do “olho por olho e dente
por dente”. Do “homem, lobo do outro homem”.
Quem suporta ver toneladas e
toneladas de trigo bom a apodrecer diante de bocas esfomeadas, indefesas, a gritar pela vida de um naco de pão?!... Qualquer cidadão do mundo, dotado de um mínimo
de bom-senso, outra reacção não teria senão tapar o rosto, cobrir-se de
vergonha e fugir, fugir sem rumo certo até encontrar nem que fosse uma nesga de
mar e aí afundar-se e afundar toda esta peçonha fedorenta que nos servem à mesa
todos os dias…
Mas
o trágico da situação é nem assim conseguir-se-ia afundá-la, essa crápula abjecta
de um indivíduo, a cuja espécie genética também pertencemos. Um indivíduo e um
regime!
Indivíduos
e regimes que não são um exclusivo endémico do solo russo. Também por aqui deitam
raízes que vêm à superfície, sobem-nos pelas pernas acima, apertam-nos as
veias, desestabilizam-nos o coração e a mente – a vida. Todos os dias, mesmo
sem nos apercebermos disso. Ai, a corda da fome enrolada ao pescoço de crianças
e idosos dependurados ao relento das horas, sem ninguém que lhes valha! Ai, a
vingança requintada de governantes – até dentro dos muros da religião - contra quem
se lhes opõe em nome da Justiça e da
Verdade!!!
Ainda
ecoam aos meus ouvidos e de todos os que tomaram conhecimento de um governante
ilhéu – para mim, de sangue mestiçado entre Hitler e Putin – que vociferava em
redor da Ilha: “Para Machico, nem um tostão”. E de um outro ‘sócio’ colaboracionista
bispo que às Irmãs, freiras do Convento da Caldeira (a única instituição
católica que fabricava e vendia hóstias
a todas as paróquias da Madeira) sim, proibiu-lhes de fornecer as hóstias para
as missas na igreja da Ribeira Seca… O
garrote financeiro a Machico e o garrote da fome eucarística aos cristãos da
Ribeira Seca. É cru e é cruel o que escrevo, mas é a realidade inexorável que
se viveu. E que poderá vir a acontecer se os madeirenses não estiverem
vigilantes.
Enquanto
o “Milho da Esperança” faz-se às ondas
para matar a fome a um povo carente, transformemos a Esperança em Trigo de Certeza
de um Mundo Melhor. Pela nossa vigilância e pela nossa intervenção!
03.Ago.22
Martins Júnior
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