sábado, 27 de agosto de 2022

O LIVRO IMPERECÍVEL!...

 

O Guião dos Dias Ímpares seguiu a onda contínua e cheia que os sinos do carrilhão de Ponta Delgada lançaram, via marítima, às nove ilhas do arquipélago açoriano, em 23 e 25 de Agosto, em memória e gratidão a um Homem Bom, bispo António Braga, assinalando respectivamente, a sua morte em Lisboa e a sua  sepultura em terro insular onde foi nado e criado, a ilha de Santa Maria.

Destas terras vestidas de azul e verde poderia encher toda a noite com aquele brilho de um pôr-do-sol inebriante, ex-libris desta estância gémea da nossa. Da mesma  forma, poderia debruçar-me sobre o LIVRO, como sempre faço neste entroncamento entre uma semana e outra.

Mas não! Hoje vou, sem conter a emoção, no rasto de um outro Livro que se fechou definitivamente. Com maior  mágoa o digo: um Livro que nunca se abriu ao mundo. Talvez porque o mundo, que o tinha nas mãos,  não quis ou não soube abri-lo.

É de um amigo e colega que hoje quero encher esta página. Breve e discreta, como lhe agrada e como sempre foi seu apanágio. Indiferente aos louros da publicidade e de uma pacífica transparência aos remoques do vulgo, ele criou desde a juventude um mundo interior característico que tanto se assemelhava a um tronco robusto como a um rústico portal, onde todos, grandes ou pequenos, podiam entrar sem risco de serem corridos.

Era assim o Padre José Vieira Pereira!

Mútuos confidentes que nós éramos, já nos bancos do Seminário do Funchal, admirava-lhe a capacidade de assumir reflexos originais, fruto de um pensamento próprio, inspirado na pujança biológica  da Natureza. Tudo discretamente, diria quase clandestinamente, sem agredir o status quo de quem se acomodava aos usos e costumes do mais gratuito laissez faire, laissez passer.

A construção de um consistente acervo filosófico-teológico, plenamente interiorizado, desabrochou, explodiu neste desabafo que um dia bateu à minha porta na Ribeira Seca, era ele pároco do Caniçal:

Martins, tenho de publicar este livro. Já sei que me vão boicotar em Portugal. Mas eu vou a Paris e publico. Tu ajudas-me a traduzir.

Fiquei atónito e, ao mesmo tempo, entusiasmado. Abrimos o volume, ainda em folhas soltas. Era um Tratado de Teologia Sacramental, uma nova visão dos sete sacramentos  da Liturgia Católica. Uma irresistível revolução dos paradigmas tradicionais, fechados sobre si mesmos!...  A Transcendência na Imanência da Matéria. Baptismo, Confirmação, Eucaristia e todos os outros rituais teriam de ser transformados em manifestações concretas da vida, do alimento, da saúde holística do composto humano: água, cultura, ginásio, pão, serviço. Os sacramentos, porque são sinais reprodutivos, e a sua recepção nunca deveriam ficar confinados às quatro paredes do templo. É fora do templo que eles se actualizam.

Passaram-se os anos e o Livro foi-se desvanecendo. Circunstâncias várias – O homem é aquilo que é, mais a sua circunstância – talvez preocupações e acontecimentos ainda por explicar ditaram o esquecimento. Terá sido, julgo, uma das suas maiores mágoas ao despedir-se de nós. É por isso que, aceitando o ocaso da vida (somos ambos do mesmo ano) ainda procuro o Livro !...

Conforta-me, no entanto,  saber que o verdadeiro Livro  é ele próprio, o Padre Pereira. E esse ninguém - nem a terra, onde já dorme definitivamente – pode comê-lo ou destruí-lo. Para os amigos e para quem o conheceu na sua riqueza bio-espiritualista, o Padre José Vieira Pereira ficará sempre vivo, no seu pensamento perene e galvanizador.

Por impossibilidade física e absoluta, não o acompanhei até à sepultura. Acompanhamo-nos todos dias, como nos tempos de outrora.

Com esta mágoa e este apelo: o pior mal não é morrer. O pior mal é não ter vivido.

Viva a Vida !!!

 

Em Lajes do Pico, Açores

27.Ago.22

Martins Júnior

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