O
Guião dos Dias Ímpares seguiu a onda contínua e cheia que os sinos do carrilhão
de Ponta Delgada lançaram, via marítima, às nove ilhas do arquipélago açoriano,
em 23 e 25 de Agosto, em memória e gratidão a um Homem Bom, bispo António
Braga, assinalando respectivamente, a sua morte em Lisboa e a sua sepultura em terro insular onde foi nado e criado,
a ilha de Santa Maria.
Destas
terras vestidas de azul e verde poderia encher toda a noite com aquele brilho
de um pôr-do-sol inebriante, ex-libris desta estância gémea da nossa. Da mesma forma, poderia debruçar-me sobre o LIVRO, como
sempre faço neste entroncamento entre uma semana e outra.
Mas
não! Hoje vou, sem conter a emoção, no rasto de um outro Livro que se fechou
definitivamente. Com maior mágoa o digo:
um Livro que nunca se abriu ao mundo. Talvez porque o mundo, que o tinha nas
mãos, não quis ou não soube abri-lo.
É
de um amigo e colega que hoje quero encher esta página. Breve e discreta, como
lhe agrada e como sempre foi seu apanágio. Indiferente aos louros da
publicidade e de uma pacífica transparência aos remoques do vulgo, ele criou
desde a juventude um mundo interior característico que tanto se assemelhava a
um tronco robusto como a um rústico portal, onde todos, grandes ou pequenos,
podiam entrar sem risco de serem corridos.
Era
assim o Padre José Vieira Pereira!
Mútuos
confidentes que nós éramos, já nos bancos do Seminário do Funchal, admirava-lhe
a capacidade de assumir reflexos originais, fruto de um pensamento próprio,
inspirado na pujança biológica da Natureza.
Tudo discretamente, diria quase clandestinamente, sem agredir o status quo de quem se acomodava aos usos
e costumes do mais gratuito laissez faire,
laissez passer.
A
construção de um consistente acervo filosófico-teológico, plenamente
interiorizado, desabrochou, explodiu neste desabafo que um dia bateu à minha
porta na Ribeira Seca, era ele pároco do Caniçal:
Martins, tenho de
publicar este livro. Já sei que me vão boicotar em Portugal. Mas eu vou a Paris
e publico. Tu ajudas-me a traduzir.
Fiquei
atónito e, ao mesmo tempo, entusiasmado. Abrimos o volume, ainda em folhas
soltas. Era um Tratado de Teologia Sacramental, uma nova visão dos sete
sacramentos da Liturgia Católica. Uma irresistível
revolução dos paradigmas tradicionais,
fechados sobre si mesmos!... A
Transcendência na Imanência da Matéria. Baptismo, Confirmação, Eucaristia e
todos os outros rituais teriam de ser transformados em manifestações concretas
da vida, do alimento, da saúde holística do composto humano: água, cultura,
ginásio, pão, serviço. Os sacramentos, porque são sinais reprodutivos, e a sua
recepção nunca deveriam ficar confinados às quatro paredes do templo. É fora do
templo que eles se actualizam.
Passaram-se
os anos e o Livro foi-se desvanecendo. Circunstâncias várias – O homem é aquilo que é, mais a sua
circunstância – talvez preocupações e acontecimentos ainda por explicar
ditaram o esquecimento. Terá sido, julgo, uma das suas maiores mágoas ao
despedir-se de nós. É por isso que, aceitando o ocaso da vida (somos ambos do
mesmo ano) ainda procuro o Livro !...
Conforta-me,
no entanto, saber que o verdadeiro Livro
é ele próprio, o Padre Pereira. E esse
ninguém - nem a terra, onde já dorme definitivamente – pode comê-lo ou destruí-lo.
Para os amigos e para quem o conheceu na sua riqueza bio-espiritualista, o
Padre José Vieira Pereira ficará sempre vivo, no seu pensamento perene e
galvanizador.
Por
impossibilidade física e absoluta, não o acompanhei até à sepultura.
Acompanhamo-nos todos dias, como nos tempos de outrora.
Com
esta mágoa e este apelo: o pior mal não é morrer. O pior mal é não ter vivido.
Viva
a Vida !!!
Em Lajes do Pico, Açores
27.Ago.22
Martins Júnior
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