domingo, 31 de julho de 2022

SINALÉTICA LOCAL PARA UMA HISTÓRIA GLOBAL

                                                                              


A euforia estival não impede o curso normal dos dias que fazem a história do mundo. E na ampla história do quotidiano das gentes perpassa aquele princípio da filosofia que nos faz partir do particular para o universal, ou seja, detectar num episódio local horizontes virtuais que se traduzem em teses e conclusões de âmbito global ou, como classificam os sociólogos, um fenómeno de “glocolização”.

         Foi o que me foi dado observar e ‘viver’ neste início da semana. Sintetizo-o em três tópicos – tão distintos e tão iguais nos seus contrastes – que passo a partilhar com quem me acompanha regularmente neste passeio familiar.

1.     Algo de invulgar, direi mesmo estranho, aconteceu nas páginas do decano dos matutinos regionais: um estudo muito sério, assinado pelo jornalista Élvio Passos, sobre um eclesiástico, pároco do Faial, que em 1936, aquando da encarniçada luta, denominada “Revolução do Leite”, contra os monopólios dos lacticínios n Madeira, assumiu por inteiro a defesa do seu povo, os camponeses criadores de gado bovino. Era o tempo da pesada e persecutória ditadura salazarista. O Padre Teixeira da Fonte, forçosamente envolvido nessa refrega perigosíssima para a sua própria segurança pessoal, entendeu que não podia voltar as costas ao seu povo, valendo-lhe a prisão para o Forte de Elvas. Conheci homens e mulheres da Ribeira Seca (hoje, já falecidos) que me relataram a rudeza implacável com que o Padre e os restantes presos foram tratados nessa altura. Mesmo na prisão, ele era o arrimo psicológico e moral de pais, mães e filhos, levados nesse fatídico transe.

          

No cancioneiro da Ribeira Seca, lá está a evocação, em verso, música e coreografia, da “Revolução do Leite”:

                                      Até o Padre do Faial

                                      Padre Teixeira da Fonte

                                      Por defender o seu povo

                                      Também foi levado a monte

 

         A diocese abandonou-o. Saído da prisão, cursou Direito e foi advogado em Lisboa de muitos presos, vítimas da ditadura salazarista. Grande Sacerdote que teve por trono uma cadeia e por altar o sacrifício da verdadeira Eucaristia: dar a vida pelo seu povo! Nunca me há-de sarar a ferida de não o ter conhecido em vida!

2.     Participei hoje na “Missa Nova” de um neo-sacerdote, meu conterrâneo. Em toda a cerimónia, revestida de imponência e sumptuosidade litúrgicas, só via diante de mim um Padre humilde e sofrido – o Padre Teixeira da Fonte - que cumpriu o mandato evangélico: servir o Povo de Deus, mais que servir e aninhar-se na Instituição.

 

3.     Na mensagem do LIVRO para este domingo, o Mestre Nazareno põe de sobreaviso os Doze, acautelando-os contra as vaidades mundanas, a ostentação e o dinheiro, as quais podem camuflar-se sob as roupagens do clericalismo triunfalista.

 

Ao compulsar o testemunho de Lucas 12, 13-21, tocou-me até ao mais íntimo de mim mesmo a contradição gritante entre o ritual apoteótico da ordenação de um jovem clérigo e a degradante  prisão do Padre Teixeira da Fonte.  Sinais dos tempos, que dimanam desta minúscula parcela de território, mas atingem toda a história da Instituição!

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                   31Jul -01.Ago.22

                   Martins Júnior

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