A
euforia estival não impede o curso normal dos dias que fazem a história do
mundo. E na ampla história do quotidiano das gentes perpassa aquele princípio
da filosofia que nos faz partir do particular para o universal, ou seja,
detectar num episódio local horizontes virtuais que se traduzem em teses e
conclusões de âmbito global ou, como classificam os sociólogos, um fenómeno de “glocolização”.
Foi o que me foi dado observar e ‘viver’
neste início da semana. Sintetizo-o em três tópicos – tão distintos e tão
iguais nos seus contrastes – que passo a partilhar com quem me acompanha
regularmente neste passeio familiar.
1. Algo
de invulgar, direi mesmo estranho, aconteceu nas páginas do decano dos
matutinos regionais: um estudo muito sério, assinado pelo jornalista Élvio
Passos, sobre um eclesiástico, pároco do Faial, que em 1936, aquando da
encarniçada luta, denominada “Revolução do Leite”, contra os monopólios dos lacticínios
n Madeira, assumiu por inteiro a defesa do seu povo, os camponeses criadores de
gado bovino. Era o tempo da pesada e persecutória ditadura salazarista. O Padre
Teixeira da Fonte, forçosamente envolvido nessa refrega perigosíssima para a
sua própria segurança pessoal, entendeu que não podia voltar as costas ao seu
povo, valendo-lhe a prisão para o Forte de Elvas. Conheci homens e mulheres da
Ribeira Seca (hoje, já falecidos) que me relataram a rudeza implacável com que
o Padre e os restantes presos foram tratados nessa altura. Mesmo na prisão, ele
era o arrimo psicológico e moral de pais, mães e filhos, levados nesse fatídico
transe.
No
cancioneiro da Ribeira Seca, lá está a evocação, em verso, música e
coreografia, da “Revolução do Leite”:
Até o Padre do Faial
Padre Teixeira da Fonte
Por defender o seu povo
Também foi levado a monte
A diocese abandonou-o. Saído da prisão,
cursou Direito e foi advogado em Lisboa de muitos presos, vítimas da ditadura
salazarista. Grande Sacerdote que teve por trono uma cadeia e por altar o
sacrifício da verdadeira Eucaristia: dar a vida pelo seu povo! Nunca me há-de
sarar a ferida de não o ter conhecido em vida!
2. Participei
hoje na “Missa Nova” de um neo-sacerdote, meu conterrâneo. Em toda a cerimónia,
revestida de imponência e sumptuosidade litúrgicas, só via diante de mim um
Padre humilde e sofrido – o Padre Teixeira da Fonte - que cumpriu o mandato
evangélico: servir o Povo de Deus, mais que servir e aninhar-se na Instituição.
3. Na
mensagem do LIVRO para este domingo, o Mestre Nazareno põe de sobreaviso os
Doze, acautelando-os contra as vaidades mundanas, a ostentação e o dinheiro, as
quais podem camuflar-se sob as roupagens do clericalismo triunfalista.
Ao compulsar o testemunho
de Lucas 12, 13-21, tocou-me até ao mais íntimo de mim mesmo a contradição
gritante entre o ritual apoteótico da ordenação de um jovem clérigo e a degradante
prisão do Padre Teixeira da Fonte. Sinais dos tempos, que dimanam desta
minúscula parcela de território, mas atingem toda a história da Instituição!
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31Jul -01.Ago.22
Martins
Júnior
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